A copa na rua

Isolado entre os movimentos, Território Livre insiste em tentar impedir a Copa

Formado na USP, movimento minimiza visibilidade dos protestos durante o Mundial de futebol para impulsionar reivindicações concretas e prega luta 'sem arrego' pela organização popular

facebook/tlivre

São Paulo – O slogan “Não vai ter Copa” surgiu em 2013, durante os protestos de rua de Belo Horizonte, e desde então popularizou-se nas mesas dos bares, nos pontos de ônibus e nas redes sociais, onde enfrenta a turma do “vai ter Copa, sim”, entusiastas do torneio mundial de futebol que começa neste 12 de junho, em São Paulo. O tom em que as hashtags contra e a favor da Copa são utilizadas na internet e nas ruas varia entre a brincadeira e a crítica sobre os descaminhos da organização do evento, como as remoções de famílias e a repressão a movimentos sociais que utilizam o torneio para dar visibilidade a suas pautas. No entanto, são poucos os que defendem o cancelamento do Mundial com a convicção do Território Livre, movimento formado por alunos da Universidade de São Paulo (USP) responsável pela colagem dos cartazes vermelhos que divulgam a “campanha” pela cidade de São Paulo.

A RBA acompanhou uma reunião aberta do movimento com seus simpatizantes e conversou em duas oportunidades com um de seus militantes, o jornalista Rodrigo Antonio. Eles se dizem “dispostos a tudo” para impedir a realização do torneio e afirmam que cumprem o “papel histórico” de manter o clima tenso nas ruas para abrir caminho para outros movimentos.

O grupo surgiu em 2006 na USP com o objetivo de lutar contra a repressão, de todas as naturezas. Inicialmente, eram uma tendência do Movimento Negação da Negação (MNN), grupo com atuação principalmente na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) e que nasceu com a pretensão de se tornar um partido. Desde então, a radicalidade marca sua atuação, o que, por um lado, provocou certa antipatia em relação ao grupo na universidade, embora remediada pela capacidade estética e cultura, expressa nos cartazes e panfletos com desenho concretista e na organização política baseada em eventos culturais.

Em 2011, durante a greve contra a presença de policiais no Campus Butantã, o Território Livre foi atuante nos protestos, e vários de seus militantes acabaram presos no processo. No balanço daquele período de mobilização, concluíram que a pauta da violência policial, teoricamente sensível para a maioria da sociedade, não havia rompido os muros da universidade em função do isolamento do movimento estudantil, e resolveram assumir então um caráter de movimento de juventude, com o objetivo de “construir o poder popular” através de pautas sensíveis aos jovens que estavam fora da vida universitária.

A mobilização contra o aumento das tarifas de transporte público durante os protestos de junho de 2013 reorientou a visão do grupo mais uma vez. A análise, à época, foi que havia força nas pautas reagentes, que ecoam a insatisfação popular em relação àquilo que o Território Livre considera ataques diretos aos direitos coletivos, como avaliam ser, atualmente, o desequilíbrio entre os gastos com a Copa do Mundo e o atendimento de demandas sociais mínimas.

Hoje, os 30 membros ativos que participam de reuniões reservadas podem ser considerados “pequenos-burgueses”. Boa parte ainda mantém ligação com o MNN, grupo que diminuiu sua visibilidade pública, e com a USP, mas com presença também nos cursos de Letras, Jornalismo, História, Artes Cênicas, Ciências Sociais, Pedagogia, artes plásticas e até no de Ciência da Computação e Física. Com a campanha “não vai ter Copa”, o grupo cresceu graças à chegada de simpatizantes e atraiu militantes mais experientes, trabalhadores, jovens da periferia e do interior.

Para participar das reuniões reservadas do TL, eles precisam comparecer a pelo menos três abertas, participar das atividades de panfletagem e concordar com o programa. Na reunião que a RBA acompanhou, cerca de 30 pessoas tinham em comum a inflamação anti-Copa, a pouca disposição para conversa teórica e o extremo interesse por ação.

Para produzir os materiais com acabamento profissional, o grupo já fez festas, vendeu camisetas e, atualmente, se diz autossustentável, vivendo da contribuição de seus próprios militantes, além de passar o chapéu durante as reuniões.

“Luta defensiva é aquela que, no primeiro momento, consegue mobilizar o trabalhador. A primeira coisa que ele quer é o seu pedaço de pão, seu emprego. Então tem que pensar que isso é positivo”, avalia Antonio. “E não é à toa que houve um salto qualitativo na mobilização que o Movimento Passe Livre (MPL) conseguiu produzir no ano passado após anos e anos defendendo a tarifa gratuita no transporte coletivo. Porque ali foi um ataque sentido, a pessoa não precisava de ideologia para protestar contra os R$ 3,20, ela precisava só olhar para a sua realidade. A questão é: o que a gente precisa é uma perspectiva política que não seja meramente ideológica, mas que mobilize a partir daquilo que é mais sensível para as pessoas.”

Fez-se necessário então organizar a juventude radical que havia saído às ruas e que, de certa forma, fora rechaçada por outros grupos de esquerda. O Território Livre foi um dos únicos movimentos organizados que legitimou a tática Black Bloce a ação violenta direta. Para eles, o uso dessas estratégias é válido quando contribui para o objetivo da organização da juventude e construção do poder popular. “É assustador como tem um rechaço aos black blocs por boa parte da esquerda organizada, que opõe a ideia de movimento popular a essa juventude radicalizada, que aponta as fragilidades do programa deles sem apontar perspectivas de unidade. A gente está tentando apontar perspectiva de organização”, avalia o militante Antonio. “Achamos legítima a insatisfação desse jovem.”

Missão histórica

No contexto da Copa, o grupo afirma ter o objetivo de, com a realização de atos públicos, manter aquecida a conjuntura para que a classe trabalhadora, “aquela que realmente pode fazer a revolução”, tenha espaço para entrar em cena posteriormente. O TL considera essa missão cumprida, por conta das greves dos rodoviários em São Paulo e dos garis no Rio, entre outras que estão ocorrendo às vésperas da Copa. As duas últimas, em especial, por cumprir uma das condições que o Território Livre considera necessárias para o “poder popular”: romper com sindicatos considerados não representativos de suas bases. “Mais que isso, o governo está com uma postura defensiva, a ponto de ter que fazer uma via sacra para defender a Copa”, afirma Antonio, em referência aos encontros que vêm sendo promovidos pelo ministro-chefe da Secretaria-geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, para explicar os impactos positivos do Mundial.

O movimento nas ruas ainda se mantém depois de oito atos da frente “Se não Tiver Direitos, Não Vai ter Copa”, muitos deles interrompidos pela violência dos Black Blocs e da intervenção policial. Nesses protestos, a maioria dos grupos envolvidos condiciona o torneio à obtenção de avanços sociais, diferente do Território Livre. “A ideia é, pela via de maior enfrentamento, ter condições de organizar a juventude para a construção do poder popular. Não é uma lógica de reivindicar algo, às vésperas da Copa, para obter uma reforma, uma reivindicação específica. Trata-se de construir o embate com o capital e o Estado para organizar a juventude”, afirma Antonio.

A radicalidade não fica apenas nas palavras de ordem. A menos de 20 dias da Copa, durante reunião aberta para planejar novos atos na Praça Roosevelt, no centro de São Paulo, simpatizantes do grupo se organizavam para “fazer todo o necessário” para impedir a realização do evento.

O TL afirma que suas posições (o discurso de que, diferentemente dos demais, não dá “arrego”; a postura de não aceitar conciliações e o reconhecimento dos black blocs) têm provocado críticas não só de setores conservadores, mas também de grupos de esquerda. MTST e Comitê Popular da Copa, por exemplo, já deixaram claro que não acreditam e nem trabalham com a possibilidade da não realização da Copa do Mundo, o que aumenta ainda mais a convicção dos militantes do Território Livre em seu “papel histórico”.

No entanto, setores alinhados com o PT os criticam por outro viés: o de que o grupo, intencionalmente ou não, presta serviço à direita por trabalhar pelo insucesso do Mundial, o que atingiria diretamente a imagem da presidenta Dilma Rousseff no ano de sua campanha à reeleição. “Quem nos chama de ‘direita’ é o petismo. O problema é que a esquerda antigovernista também não diz a que vem”, pondera Antonio. “Ao puxar uma palavra de ordem como ‘Dilma, me escuta, na Copa vai ter luta’, contraditoriamente, os setores dessa esquerda não governista impõem um limite, que é, a rigor, não ir até o fim com relação a barrar a Copa. Para isso, se aproximam das alas governistas”, avalia. “A gente não tem ilusões com o Estado. A questão é que nós temos um foco em organizar lutas que não sejam absorvidas pelo capital. A questão é barrar a Copa do Capital, não é barrar a Copa da Dilma.”

E depois da Copa?

A perspectiva de haver Copa, no entanto, não é encarada como fracasso. “Uma derrota em luta é melhor que uma falsa vitória. Se a gente se organizar para o enfrentamento, para estar mais organizado durante esse processo, é muito melhor do que a gente ir pela linha de menor resistência, ter uma vitória parcial que o capital nos dará com uma mão para, mais tarde, tirar com outra. Isso é recorrente.”

O futuro da organização é a aproximação com a Aliança Operário-Estudantil, frente de grupos que, entre outras atividades, publica O Corneta, um jornal com denúncias de trabalhadores das fábricas onde é distribuído. O entendimento é que a juventude, com seu “tempo livre, disposição e radicalidade”, contribua para a luta dos trabalhadores. Dessa forma, o TL não quer se limitar ou terminar com o fim da Copa, aconteça ou não, e deve continuar trilhando seu caminho pela construção do poder popular. “A juventude, em geral, é o apito da panela de pressão, e não necessariamente quem vai fazer os processos sociais avançarem. Mas é um bom sinalizador. Em maio de 1968, ficou bem nítido, com os estudantes abrindo espaço para a luta dos trabalhadores, ocupando fábricas. A juventude tem esse papel”, conclui.

Enquanto isso, a insistência do movimento no que, a esta altura, parece ser impossível – impedir a realização de um dos maiores e mais ricos eventos esportivos do mundo, vitrine e vidraça eleitoral, além de expressão de uma paixão nacional – faz o grito de ordem parecer contaminado de birra, como se a intenção final fosse apenas criar constrangimento ao governo petista. O TL jura que não é o caso.

“A gente tem total confiança que a classe que pode construir um mundo novo é a dos trabalhadores. A Copa é um evento esportivo, não é nada. Acontece que a gente tem um cenário de direções burocráticas nos movimentos estudantis e nos sindicatos de trabalhadores que servem de freio para o potencial explosivo. O TL se propõe a apontar essa perspectiva de ruptura com essas estruturas. A gente não está blefando. Queremos colocar claramente essa perspectiva de organização e colocar na parede não só o Estado e o capital, mas também essa esquerda que muitas vezes não diz aonde vai”, afirma Antonio.

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