Glória ao Almirante Negro

Chicoteado por mulher branca, entregador vai para a Sapucaí como João Cândido, herói da Revolta da Chibata

“O que aconteceu comigo, mais de um século depois da revolta liderada pelo João Cândido, não pode acontecer nunca mais”, disse Max Ângelo sobre a agressão sofrida em 2023, no Rio, agora ressignificada pela Paraíso do Tuiuti

Paraíso do Tuiuti/Divulgação
Paraíso do Tuiuti/Divulgação
Max Ângelo dos Santos representará o almirante negro João Cândido, líder da Revolta da Chibata, em 1910, contra maus-tratos aos marinheiros, e herói nacional

São Paulo – O entregador Max Ângelo dos Santos, que foi chicoteado por uma mulher branca em São Conrado, na zona sul do Rio de Janeiro, em abril de 2023, será o heroi da Revolta da Chibata no carnaval carioca. Ele aceitou o convite da escola de samba Paraíso do Tuiuti e vai desfilar como o almirante negro João Cândido, que em 1910 se rebelou contra os maus-tratos aos marinheiros.

O enredo do desfile da Tuiuti marcará a conexão histórica entre esses acontecimentos, que têm em comum o chicote, a chibata e a coleira de cachorro. Ou seja, em diferentes épocas, esses acessórios foram usados para violentar corpos negros, da escravidão entre os séculos 16 e 19, até, infelizmente, os dias de hoje.

Max participou pela primeira vez do ensaio técnico da escola ontem, e afirmou estar ansioso para o dia do desfile na Sapucaí, na segunda-feira de carnaval, dia 12 de fevereiro. “Esse convite foi uma surpresa imensa. Eu nunca desfilei antes por escola nenhuma. Fui conhecer o barracão do Tuiuti e lá eles me contaram a história do João Cândido. E eu fiquei super feliz de saber que ia representar um herói nacional, que ainda não tem muito reconhecimento”, disse à Agência Brasil.

A história de um herói

Morador da Rocinha, comunidade na zona sul do Rio, ele também destacou que o que aconteceu “mais de um século depois da revolta liderada pelo João Cândido não pode acontecer nunca mais”. “Só quem passa por esse tipo de violência sabe como é. Tem a dor física, mas a dor mental é muito pior. Acho que tem tudo a ver a história do João Cândido com outras histórias atuais e a minha. E o enredo fala muito disso”, completou.

O nome oficial do samba-enredo do Tuiuti é Glória ao Almirante Negro! e está sendo desenvolvido pelo carnavalesco Jack Vasconcelos. Em destaque, a vida de João Cândido, marinheiro brasileiro que lutou em 1910 contra os açoites, maus-tratos e a má alimentação que ele e os companheiros, a maioria negra, recebiam na corporação. Para eles, era uma prova de que a abolição em 1888 não havia sido completa, como fica claro em uma das cartas endereçadas pelos revoltosos ao presidente da República.

“Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podendo mais suportar a escravidão na Marinha Brasileira, a falta de proteção que a Pátria nos dá e até então não nos chegou; rompemos o negro véu, que nos cobria aos olhos do patriótico e enganado povo”. Um dos trechos do samba do Tuiuti reforça a ideia de liberdade incompleta para a população negra: “Lerê lerê, mais um preto lutando pelo irmão. Lerê lerê e dizer nunca mais escravidão”.

A luta por justiça

Questões que se estendem ao século 21, nas palavras de Max Ângelo: “Imagina tomar uma chicotada como se tivesse voltado lá atrás na época dos ancestrais, quando você era açoitado apenas por olhar para o senhor da fazenda. E, um ano depois, eu ainda sinto aquilo e não desejo para ninguém. É a pior coisa do mundo. É mais fácil levar um soco no rosto do que ser açoitado como se você fosse um escravo”.

Quando a Revolta da Chibata chegou ao fim em 1910, muitos dos amotinados foram dispensados da Marinha, outros presos em protestos posteriores e até enviados para campos de trabalho em plantações. Coletivamente, eles conseguiram dar uma demonstração de força, união e legar aos futuros marinheiros um ambiente livre da prática de castigos corporais.

Max Ângelo, depois das agressões sofridas em 2023, recebeu ajuda financeira por meio de uma arrecadação coletiva, teve apoio de artistas famosos e conseguiu um novo emprego como auxiliar administrativo em uma empresa de publicidade. Hoje, aos 38 anos, enquanto luta para conseguir uma vida melhor, também entende que se tornou uma voz importante contra o racismo e os diferentes tipos de violência que atingem a população negra no Brasil.

“Eu, dentro da avenida, quero dar voz, quero que as pessoas saibam que elas não estão sozinhas. Quero incentivar as que passam por situações parecidas com as que aconteceram comigo e dizer que a gente não tem que baixar a cabeça”, afirma Max. “O Brasil nunca vai ter um futuro melhor se continuar com essas situações de agressão e racismo. É muito triste as pessoas te humilharem por conta da sua pele ou por causa do lugar que você mora. Eu tenho muito orgulho de morar na favela e da minha pele preta”.

Relembre o caso

Max foi agredido pela ex-atleta de vôlei e professora Sandra Mathias Correia de Sá. O ataque racista teve início porque Sandra não gostou de ver entregadores na calçada exatamente no ponto onde em frente eles trabalhavam, no bairro rico da zona sul. O crime aconteceu no dia 9 de abril de 2023 e rapidamente as imagens da agressao repercutiram nacionalmente. O video dura cerca de um minuta e mostra Sandra puxando a camisa e dando socos no entregador. Ela ainda pega a guia da coleira do cachorro e dá uma chicotada nas costas dele.

A agressora também aparece mandando os entregadores voltarem para favela e os xingando de “lixo”. Ela foi indiciada por lesão corporal, injúria e perseguição. Sandra parou de dar aulas nas areias da praia do Leblon e teve que se mudar do condomínio em que vivia. Com a repercussão de seus atos criminosos, o Edifício Estrada da Gávea notificou o proprietário do imóvel sobre prejuízos à imagem do condomínio, e ele pediu o apartamento de volta à ex-atleta. Sandra saiu do local no dia 27 de maio.

Com reportagem de Rafael Cardoso, da Agência Brasil