60 anos do golpe

Caminhada do Silêncio: ‘Feridas que não cicatrizaram e continuam sangrando’

Militante contra a ditadura, presa e torturada pelo DOI-Codi, Amelinha Teles participou da 4ª Caminhada do Silêncio, em São Paulo. Entidades em defesa da democracia, parlamentares e ex-ministros homenagearam as vítimas do golpe

Paulo Pinto/Agência Brasil
Paulo Pinto/Agência Brasil
Caminhada em São Paulo lembrou os 60 anos do golpe que instaurou a ditadura civil-militar no Brasil

São Paulo – Caminhada em São Paulo, ontem (31), lembrou os 60 anos do golpe que instaurou a ditadura civil-militar no Brasil. Chamado de Caminhada do Silêncio pelas Vítimas de Violência do Estado, o ato teve início na antiga sede do Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), na Rua Tutoia, na Vila Mariana, zona sul da capital paulista. A caminhada teve como destino o Monumento em Homenagem aos Mortos e Desaparecidos Políticos, no Parque Ibirapuera.

“Esse é um ato que relembra os 60 anos da malfadada ditadura. Estamos em frente a um dos mais importantes centros de repressão da ditadura militar brasileira que é a antiga sede do DOI-Codi, onde as Forças Armadas, associadas à sociedade civil de São Paulo, torturaram milhares de pessoas no fundo desse prédio e onde dezenas de companheiros e companheiras foram assassinados”, disse Henrique Olita, membro do diretório estadual do PT.

Foi nesse lugar que o ex-deputado estadual e presidente da Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo, Adriano Diogo, ficou preso por 90 dias durante a ditadura. “Fiquei 90 dias aqui. Fiquei 90 dias em uma cela solitária bebendo água de boi”, relembrou ele, em entrevista à Agência Brasil. “Aqui é uma casa de morte”, reforçou.

Sessenta anos

Também foi no DOI-Codi que Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha, foi presa, torturada e estuprada. “Fui presa política aqui no DOI-Codi entre 1972 e 1973. Aqui fui torturada e estuprada. Minha família toda foi sequestrada e trazida aqui para o DOI-Codi. Minha filha, Janaína, tinha cinco anos de idade [na época] e meu filho tinha 4 anos.”

“Os 60 anos do golpe militar de 1964 não têm como serem esquecidos. Esse é um passado que está muito presente ainda. São feridas que não cicatrizaram e que continuam sangrando nos dias de hoje. O Brasil continua ameaçado de golpes e de violência do Estado”, disse Amelinha. “As novas gerações precisam conhecer isso para se fortalecer e para investir mais na construção da democracia brasileira”, acrescentou.

Memória

Nesta quarta edição da Caminhada do Silêncio, os manifestantes reforçaram a necessidade da memória, adotando como tema a frase: “Para que Não se Esqueça, Para que Não Continue Acontecendo”. E lembraram que as populações periféricas seguem sofrendo com a violência policial, mesmo nos dias atuais.

“Temos um passivo que não é só a questão de memória ou de reverenciar aquelas pessoas que deram o melhor da sua vida pela luta da liberdade do Brasil e dos direitos do povo. A ditadura militar deixou uma série de passivos (no país). Mesmo com o remendo de Constituinte de 1988, a estrutura de repressão no Brasil não se alterou. Temos uma Polícia Militar – que deveria ser uma Polícia Civil – totalmente militarizada e que tem feito o que estamos assistindo hoje, como essa operação policial no litoral de São Paulo (operações Verão e Escudo) onde mais de 50 pessoas foram assassinadas. Essa é a maior chacina da polícia depois do caso do Carandiru. Isso é absurdo. Esse é um dos passivos da ditadura, que temos que superar”, disse Olita, também à Agência Brasil.

Participaram do ato deste domingo na capital paulista personalidades como o ex-deputado José Genoino, o deputado estadual Eduardo Suplicy (PT) e a deputada federal Luiza Erundina (Psol-SP).

“O 8 de janeiro de 2023 tem a ver com 2016 (impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff), que foi um golpe. E esses dois (eventos) têm a ver com 1964, porque a transição da ditadura para a democracia se deu num pacto pelo alto, num pacto das elites que não mexeu com as estruturas de poder. Eu estava na Constituinte (de 1988) e vivi isso”, disse Genoino.

Para Erundina, lembrar os 60 anos do golpe é importante para que a população “nunca se esqueça daquilo que brasileiros e brasileiras passaram”. Segundo ela, o Brasil ainda não reparou e nem fez justiça sobre o que aconteceu nesse período.

“Não vamos esquecer (o que aconteceu). Vamos continuar cobrando, exigindo e levando às novas gerações a realidade sobre aquele tempo para que eles também nos ajudem a continuar essa luta. Não podemos permitir que os crimes da ditadura fiquem impunes, como os desaparecimentos forçados de mais de 4 mil brasileiros. Enquanto isso não for passado a limpo, a ditadura não acaba. Temos que continuar lutando por essa causa e não admitir que isso seja esquecido porque o esquecimento pode levar a riscos de outras ditaduras”.

Recado a Bolsonaro

O evento também foi marcado por pedidos de responsabilização do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus aliados. Eles são acusados de terem tramado uma tentativa de golpe para impedir a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para manter Bolsonaro no poder, segundo investigações da Polícia Federal. O roteiro golpista também teria levado ao atentado à democracia no dia 8 de janeiro.

Durante a Caminhada do Silêncio, o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP), por exemplo, pediu prisão a Bolsonaro. E foi seguido pela secretário de Direitos Humanos da gestão do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), que lembrou que se a tentativa de golpe tivesse dado certo, “ninguém poderia estar aqui participando deste ato”, afirmou.

A secretaria também defendeu o direito à memória. “Chega a ser amargamente irônico que, ao mesmo tempo em que não se permitiu fazer o sepultamento digno de tantas pessoas, se queira deixar enterrado o passado.” Ao final de sua fala, segundo informações da Folha de S. Paulo, o público gritou “fora Nunes”, contra o prefeito que em sua tentativa de reeleição vem contando com o apoio de Bolsonaro. Os manifestantes também contestaram durante o ato a orientação dada pelo presidente aos ministérios, no começo do mês, de não realizar atos em memória da efeméride em meio a um esforço para distensionar as relações com as Forças Armadas e diante da polarização persistente no país.

“Esse é um passado que está muito presente ainda. São feridas que não cicatrizaram”, afirmou Amelinha (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

DOI-Codi

O DOI-Codi foi uma agência de repressão política subordinada ao Exército. Neste local, os inimigos da ditadura foram encarcerados, torturados e mortos. Estima-se que por ali passaram mais de 7 mil presos políticos, quase todos torturados. Desses, pelo menos 50 deixaram o local já sem vida.

Atualmente, neste endereço funciona o 36° Distrito Policial, da Polícia Civil. É neste lugar também que ultimamente tem sido realizada uma pesquisa arqueológica para aprofundar os conhecimentos sobre o prédio e também identificar as pessoas que passaram pelo local. Há também uma proposta de ressignificar esse espaço, transformando-o no Memorial da Luta pela Justiça.

“Aqui foram assassinadas, pelo Ustra (o comandante do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra), mais de 50 militantes políticos”, falou Amelinha. “Aqui precisa ser um centro de memória e de defesa dos direitos humanos. A memória e o direito à verdade são direitos humanos. Aqui tem que ter um museu, um memorial e cursos de direitos humanos. Essa delegacia não deveria mais existir aqui porque essas paredes estão manchadas de sangue dos nossos companheiros”, acrescentou.

A Caminhada do Silêncio foi organizada pelo Movimento Vozes do Silêncio, representado pelo Instituto Vladimir Herzog, e pelo Núcleo de Preservação da Memória Política, com apoio de diversas instituições.

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Com reportagem da Agência Brasil