Direito à água

Campanha Tenho Sede começa a construir suas primeiras cisternas no semiárido

Campanha recebe doações de pessoas físicas e firma contratos com empresas de saneamento vinculadas aos estados da Paraíba, Ceará e Pernambuco

Leo Drumond / ASA Brasil
Leo Drumond / ASA Brasil
Por meio da ASA, já foram construídas 1,2 milhão de cisternas, mas há ainda um déficit de 357,5 mil

São Paulo – Moradora da comunidade do Tabuleiro, no município de Orós, Ceará, dona Damiana Josino Silva, 65 anos, foi contemplada esta semana com a instalação de uma das primeiras cisternas em construção no semiárido com recursos da campanha Tenho Sede, coordenada pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). A alegria tomou conta da aposentada, que mora perto do famoso açude inaugurado por Juscelino Kubitschek em 1961.

“O açude nunca mais sangrou, a água tem muito micróbio e quando não chove a gente passa muita necessidade. Já a cisterna, não. É a água da chuva, água pura, limpa, pra beber e pra cozinhar”, disse à RBA, referindo-se ao fato de que, com o baixo volume das últimas décadas, o açude de Orós, assim como os demais, não transborda e a água não se renova, acumulando impurezas. “Enchem de cloro, um sofrimento pra quem ainda não tem cisterna.”

Dona Damiana conta que a cisterna é capaz de armazenar 16 mil litros de água, que são usados com economia ao longo do período da seca, de julho a novembro. E que para lavar a louça, a roupa e cuidar da casa, utiliza-se ainda a água do açude. O que parece pouco para quem está acostumado com a cultura do desperdício, a cisterna é um sonho para as famílias do sertão. E por isso é muito esperada, bem vinda e celebrada. “Aqui é motivo de festa quando está sendo feita e quando começa a funcionar”, disse.

A aposentada, que mora com dois bisnetos, contou que há anos esperava conquistar a sua cisterna. “Agora estou muito satisfeita, agradecida.”

Sem verbas para cisternas, 350 mil famílias do semiárido não têm água para beber

“Agora estou muito satisfeita, agradecida”, diz dona Damiana. Foto: Daniela Lima /Elo Amigo

A cisterna da dona Damiana é uma das 20 atualmente em construção pela campanha Tenho Sede em comunidades carentes de municípios dos estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Alagoas, Bahia e no norte de Minas Gerais, região geográfica por onde se estende o semiárido brasileiro.

“É uma campanha muito linda, inspirada como a música de Gilberto Gil, com imagens e depoimentos sobre mudanças de vida trazida para famílias com a instalação das cisternas. A gente já recebeu várias doações de pessoa física, que totalizam RS 156 mil. Mas há também campanhas junto a empresas de saneamento ligadas aos governos estaduais. E três contratos assinados com empresas da Paraíba, Ceará e Pernambuco”, afirma Glória Araújo, coordenadora executiva da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA).

A campanha Tenho Sede nasce do diálogo com cada estado, como disse Glória. Tanto que o Consórcio Nordeste lançou um programa de alimentação saudável no semiárido, inserindo a necessidade de captação permanente de recursos por meio de parceria com companhias estaduais de água e sanemaento.

A iniciativa foi criada para tentar atender parte da demanda reprimida por essas tecnologias simples, porém eficientes. Naquela região, 350 mil famílias ainda dependem de caminhões-pipa no período mais crítico da seca e, ao todo, há uma demanda de 1,45 milhão de cisternas para armazenar água para consumo humano. Desde que a Articulação lançou seu programa para a construção desses reservatórios, em 1999, já foram instalados 1,2 milhão de unidades, mas há ainda um déficit de 357,5 mil delas.

De acordo com a coordenadora, em 2014 os investimentos governamentais foram de R$ 215 milhões, com a construção de 145 mil cisternas. Ela fala do desmonte das políticas, que foi reduzindo o orçamento para o programa de cisternas até chegar a paralisar a construção. “Daí em diante foi minguando, minguando e, em 2021, não teve investimento para água. E o povo precisa de água”, disse a ativista.

Cisternas no semiárido, sede e a volta da fome

Direito humano reconhecido pela Organização das Nações Unidas, a água é inerente ao combate à fome, já que é impossível preparar refeições sem ela. E tampouco os roçados no sertão prosperam durante a seca. “O importante é que a água chegue. A cisterna, sozinha, não vai resolver tudo, mas sem ela, nesse período de pandemia, a fome teria voltado mais rápido e de maneira mais intensa.”

Essa consciência das limitações da cisterna diante da complexidade da seca e da histórica falta de investimentos em políticas públicas que valorizem o conhecimento das comunidades do sertão na construção de novas tecnologias de convivência com o meio é o que norteia as ações da ASA.

“Não basta construir cisternas. É preciso trabalhar no caminho das águas, atuar contra o desmatamento, porque quando se tiram árvores, matam-se nascentes e a água desaparece. É preciso um trabalho político para o gerenciamento da água, que não teremos para sempre. Fazemos mobilizações e intercâmbios com agricultores para manejo da água e das sementes, para que não tenham de depender do poder público. Pensavam que o semiárido fosse só chão rachado, mas há muito lá. Há pessoas com muito conhecimento. O semiárido é lindo, o povo é maravilhoso. É isso que a gente faz: retroalimenta a nossa energia. O conhecimento é a sabedoria das pessoas do semiárido que tem de ser valorizada e reconhecida”, completa Glória.

Além da construção de cisternas, quem colabora com a campanha contribui também com a mudança de horizontes, em um trabalho que inclui mobilização e conscientização ambiental e cidadã. “As chuvas que enchem as cisternas são democráticas, mas vai chegar a hora em que um caminhão pipa vai ser necessário. E então isso passa a ser visto como um direito, como uma obrigação do gestor, não mais como um favor pago com voto”, afirmou.

Assista Gilberto Gil


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