Déjà vu

Aumento da fome: políticas sociais de Bolsonaro são ‘involução’, aponta historiadora

Em retrospectiva histórica, Denise De Sordi mostra que atuação do governo remete a visões ultrapassadas há décadas. ‘É um curto circuito geral de todas as referências que tínhamos para pensar o desenvolvimento social do país”

Marcelo Camargo/ABr
Marcelo Camargo/ABr
"Há um curto circuito geral de todas as referências que tínhamos para pensar o desenvolvimento social do país", lamenta Denise De Sordi

São Paulo – De referência mundial no combate à fome, o Brasil vive hoje um processo de “involução” ao adotar políticas semelhantes às já superadas há décadas e ignorar o que o levou a deixar o vergonhoso Mapa Mundial da Fome da ONU, em 2014. É o que alerta a historiadora e pesquisadora do programa de pós-doutorado do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), Denise De Sordi, em entrevista a Glauco Faria, no Jornal Brasil Atual.

Em uma perspectiva histórica, a pesquisadora analisou as políticas públicas e as noções quanto à fome que eram adotadas no início dos anos 1990. No início da década, 25 milhões de brasileiros estavam subalimentados, segundo relatório sobre segurança alimentar das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês). De acordo com Denise, a mobilização em torno do problema era diferente do que o país tem agora, porém, também se aproximava em alguns aspectos por alinhar a ideia de que o “desenvolvimento econômico, por si só, em algum momento vai trazer soluções automáticas para essas questões”.

Impacto do Fome Zero no Brasil

O que se via no período era um combate via ações individuais, campanhas cívicas e filantrópicas, como a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, fundada em 1993 pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Havia ainda programas sociais em nível local, mas no sentido de moralização da pobreza e desresponsabilização de certa forma do papel do Estado – presente nas políticas do atual presidente Jair Bolsonaro. 

“É interessante observar que ao longo dos anos 1990, o Estado brasileiro relutava em admitir que tínhamos cenários graves de fome no país, quando isso acontecia. Essa discussão era pautada pelos movimentos de oposição ao governo, pelos partidos de oposição, mais fortemente pelo PT. E isso é trazido numa discussão de articulação dos próprios movimentos sociais”, explica a historiadora.

Dados da ONU mostram que perto de 3,5 milhões de brasileiros deixaram de passar fome nos anos 1990. Mas o maior avanço, contudo, só ocorreu na década seguinte, quando a fome e a pobreza passaram a ser compreendidas como problemas estruturantes do Brasil. Nos anos 2000, o país passou a ser uma referência por conta do programa Fome Zero, implementado no governo do ex-presidente Luiz Ináco Lula da Silva. Um pacote de 31 iniciativas que visavam combater a fome e a pobreza, mas que passou a contar adiante, em paralelo, com outras iniciativas importantes para a redução da pobreza como a política de valorização do salário mínimo, o incentivo à criação de empregos formais, o apoio à agricultura familiar, entre outras políticas públicas. 

A novidade, conforme aponta Denise, estava em entender que os programas sociais, sozinhos, não resolvem tudo, mas sim um conjunto de medidas em diferentes frentes. “Sempre pensamos em fome, pobreza, ou desigualdade social, temos que pensar nas formas de concentração de renda, sobre como a produção no país está organizada”, destaca. Nessa chave de atuação, o Brasil retirou 15,6 milhões de cidadãos da subalimentação, um recuo de 82,1%, segundo indicador da FAO, o que estava começando a mudar a realidade do país. Em 2014, apenas 1,7% da população ainda não sabia se teria garantida a próxima refeição. 

Auxílio Brasil: síntese do desmanche social

O processo, no entanto, acabou interrompido pelo governo de Michel Temer, em 2016, seguindo até a atual gestão de Bolsonaro, com as reformas trabalhista e previdenciária e o fim da política de valorização do salário mínimo, entre outras medidas. A “síntese” desse processo, de acordo com a pesquisadora, foi o encerramento do Bolsa Família. O programa de destaque para a superação da pobreza, dentro do Fome Zero, que terminou sendo substituído pelo Auxílio Brasil. “Um retrocesso na rede de proteção social”, critica a pesquisadora. 

“Ele aparece como síntese de todas essas ações de desmanche. O Auxílio Brasil tem um foco completamente voltado para ações individuais, retoma essa ideia de que um suposto desenvolvimento econômico, de recuperação que estava prometida e não estamos vendo, vai resolver a questão”, pontua. “E essa política é parecida com o que tínhamos no início dos anos 1990. E agora talvez seja mais desastroso ainda porque estamos em um processo de desregulamentação dos direitos trabalhistas e também de aceleração do empobrecimento da população pela não geração de empregos e porque o Estado está em completo desmonte. É um curto circuito geral de todas as referências que tínhamos para pensar o desenvolvimento social do país”, lamenta. 

Movimentos sociais contra a fome

Não à toa a sociedade civil vem se mobilizando para realizar ações emergenciais e preencher esse vácuo institucional. É o caso da campanha Natal Sem Fome, do MST, e Natal para Todos, organizada pela rede de Cozinhas Solidária do MTST, assim como iniciativas da própria Ação da Cidadania.

“É muito sintomático que desde 2015 eles venham ativando os seus circuitos de atuação e isso se aprofunda com a pandemia, tal como acontecia nos 1990. Então há já uma mobilização da sociedade civil, mas o quadro em que estamos é completamente crítico, não há como essas ações serem permanentes. Elas servem para alertar, são emergenciais, importantíssimas, mas é preciso que o Estado se responsabilize, ele existe para isso”, cobra Denise De Sordi.

Confira a entrevista

Redação: Clara Assunção


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