‘Reservas são confinamentos de índios’, acusa ex-padre fundador do Cimi

“Na área de Dourados, existe em torno de 15 mil indígenas confinados em 3,5 mil hectares. É uma área totalmente sem mata, sem condições propícias para a reprodução física e cultural dos Guarani-Kaiowá'

‘A prática do governo federal é contrária aos direitos constitucionais e aos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário’ (Foto: Wilson Dias/ABr)

São Paulo – O indigenista e cientista político Egon Heck trabalha há mais de 40 anos ao lado de comunidades indígenas em todo o país. Militante do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Egon é ex-padre e um dos fundadores dessa entidade. Formado em Teologia e em Filosofia, com pós-graduação em Ciência Política, ele sempre acompanhou de perto a situação dos índios Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul.

Atualmente, a luta dessa tribo pelo retorno ao seu território original ganhou repercussão após um manifesto em que, diante do frequente descaso em relação às suas reivindicações, pediam que fosse decretada sua “extinção coletiva” pelo governo federal e pela Justiça. Nesta entrevista ao Sul21, Egon Heck faz um resgate histórico da situação dos Guarani-Kaiwoá na região e conta como são as condições de vida desse povo.

“Na área de Dourados, existe em torno de 15 mil indígenas confinados em 3,5 mil hectares. Foram levados para lá de 40 regiões diferentes. É uma área totalmente sem mata, sem condições propícias para a reprodução física e cultural dos Guarani-Kaiowá. É impossível, nessas condições, perpetuar a economia e a visão cosmológica de mundo deles”, comenta.

Para o especialista, as reservas indígenas se configuram, na prática, como prisões – pois não representam territórios sagrados para os índios e misturam diferentes tribos num espaço muitas vezes pequeno. “Os índios se locomoviam por toda uma região e acabaram confinados em pequenas áreas. As reservas são, na verdade, confinamentos de índios. São depósitos onde eles são colocados para serem disponibilizados como mão-de-obra agrícola”, acusa.

Como vivem os Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul?

A realidade vivida pelos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul é de uma gravidade que eu nunca havia visto nos 40 anos em que trabalho com povos indígenas. A violência que eles sofrem é decorrente da falta de terra, que é decorrente de um processo histórico e atual de preconceito e discriminação. Essa conjunção de fatores faz com que eles se encontrem hoje numa das piores situações no Brasil e no mundo. Os números são alarmantes, seja em termos de mortes por conflitos violentos na luta da terra, seja por mortes decorrentes da falta de condições de vida. Isso faz com que praticamente não seja mais possível se reproduzir o tecido social dos Guarani-Kaiowá. Nessas condições, a cultura deles não tem como enfrentar as diversas situações de confronto, que são agravadas pela fome, pelo alcoolismo e por outros elementos que vão se introjetando nas comunidades indígenas. Temos um quadro de extrema gravidade e o que mais preocupa é que não há decisões políticas para que se enfrente positivamente essa situação. É preciso remover esses obstáculos: a falta de terra e a falta de condições de sobrevivência.

Sem terras e condições de vida adequadas, como eles se sustentam?

Hoje, mais de 90% das famílias Guarani-Kaiowá depende diretamente da cesta básica. Isso gera um problema psicológico muito forte e cria uma cultura de dependência e desestímulo ao próprio trabalho de produção dos alimentos. Eles praticamente não conseguem encontrar trabalho. Os empregos fora da aldeia eram nos fundos de fazendas e deixaram de existir com a mecanização da agricultura. Hoje, cerca de 10 mil índios trabalham nas usinas de cana de açúcar. Podemos imaginar que a situação tende a se agravar, ao invés de melhorar. Isso só reforça um processo de genocídio.

Como se originou o processo de expulsão desses índios das suas terras?

Os índios já participaram na Guerra do Paraguai, no século XIX, e tiveram vários mortos. Mas eles conseguiram se manter na floresta, porque aquela região foi mantida com a atividade econômica do plantio de erva mate, que não afetava profundamente o meio-ambiente. Os Guarani-Kaiowá conseguiram se manter nas florestas, complementando sua sobrevivência com o trabalho na colheita de erva mate. De 1915 a 1928, o Serviço de Proteção ao Índio (SIP) demarcou oito pequenas áreas indígenas, sendo quatro delas com uma dimensão de 3,5 mil hectares e as outras com 2,4 mil hectares. Com isso, foi acontecendo um processo de implantação lenta da pecuária e de derrubada da mata para plantações de capim. Os índios foram, inclusive, utilizados nesse trabalho de desmatamento. Mas, ainda nesse período, continuavam vivendo nos fundos das fazendas, no pequeno pedaço de mato que sobrava. Durante todo o século passado até 1943, puderam viver relativamente bem. Com o plano do governo de Getúlio Vargas de ocupação da fronteira Oeste através da colonização e da implantação massiva da agricultura, estabeleceu-se a colônia agrícola de Dourados, com mil famílias em mil lotes de 30 hectares. Isso afetou profundamente os índios, que tinham locomoção por toda a região e acabaram confinados em pequenas áreas. As reservas são, na verdade, confinamentos de índios. São depósitos onde eles são colocados para serem disponibilizados como mão-de-obra agrícola.

Leia a íntegra da entrevista no Sul21