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‘Domínio dos homens está levando ao fim do mundo’

Escritora e idealizadora do festival 'Agora É Que São Elas', neste fim de semana, em São Paulo, ressalta luta das mulheres pelo fim da violência de gênero na política

CC0 Creative Commons
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Pobreza, violência, degradação ambiental, preconceito, guerras e ódio, estão entre os resultados do milenar domínio masculino do planeta

São Paulo – A capital paulista recebe nestes dias 21 e 22, sábado e domingo, a segunda edição do Festival Agora É Que São Elas, um evento multicultural que celebra sobretudo a diversidade, mas com abordagens objetivas das muitas bandeiras de luta dos movimentos de mulheres no Brasil e no mundo. Mostra de filmes (muitos deles em 16 mm), performances, debates (com presenças como Manuela D’Ávilla, Luiza Erundina, Sonia Guajajara e Monica Benício), shows musicais, exposição de artes, rodas de poesias e literatura e outras formas de expressão mostrarão ao público a necessidade de inserir a discussão sobre as consequências de que a história da humanidade foi predominantemente dominada pelo gênero masculino, ao mesmo tempo em que as mulheres foram relegadas a instâncias inferiores de poder e participação.

Entrevistada pelos jornalistas Marilu Cabañas e Glauco Farias na edição de sexta-feira (20) do Jornal Brasil Atual, a escritora e roteirista, Antonia Pellegrino, idealizadora e curadora do festival afirma que “estamos vivendo o fim desse mundo”.

Ela conta que a programação do seu evento – no Centro Cultural São Paulo – tem como eixo principal a discussão sobre a violência política de gênero, que vê como o principal entrave para que as mulheres – e excluídos em geral – tenham tanto acesso às esferas de poder quanto os homens, o que deverá possibilitar melhorias gerais na vida das populações e até do planeta. “Na minha a visão se coloca (com o fim desse mundo gerido por homens) a possibilidade de você ter um mundo em que você tenha seres com valores mas igualitários”.

Confira a entrevista:

Qual a principal preocupação do festival? Qual a realidade do cinema em relação as cineastas?

O “Agora É Que São Elas” é uma plataforma editorial que tem um foco forte na questão das mulheres nos espaços de poder, porque entendemos que é preciso transformar o poder por dentro para que a gente tenha uma democracia que seja mais inclusiva.

É preciso que figuras políticas que nunca estiveram lá, como por exemplo as mulheres, estejam, para que a gente tenha a nova política. Esse fetiche que está colocado, a nova política, acredito eu que será feita por mulheres, por pessoas negras, por pessoas que tradicionalmente não estão ali.

O festival está em sintonia com o que acontece hoje, a greve climática, porque quando falamos de poder não é sobre cargos, de “promoção”. Não é um feminismo liberal, que pensa no indivíduo, mas sim na sociedade como um todo.

A gente tem uns dados aqui: dos filmes lançados nas salas brasileiras, 79% deles foram dirigidos por homens e dos 172 realizadores que lançaram obras no Brasil em 2017, apenas 16 eram mulheres. É bastante desigual. O do festival tem a participação do Laboratório de Projetos Histeria e também é importante porque vocês vão trazer pessoas e promover debates.

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Antonia Pellegrino, idealizadora do AgoraÉ Que São Elas

Eu sou idealizadora do projeto como um todo e curadora da parte dos debates. Os debates este ano estão centrados na questão da violência política de gênero, que é a que acontece para impedir mulheres de acessar espaços de poder político, de permanecerem nesses espaços e diminuir a presença e a potência da presença das mulheres ali.

Serão oitos mesas que abordarão diferentes aspectos de como a violência política de gênero impacta a vida das mulheres.

A gente começa com uma mesa da Marina Silva comigo, que chamamos de “Relatos do Front”. Temos uma mesa muito importante sobre essa minirreforma eleitoral discutida no Congresso, que terá as professoras Ligia Fabris e a Teresa Sacchet, que falarão sobre as formas jurídicas de viabilizar candidaturas eleitorais de mulheres, como conseguir financiamento etc.

Tem uma mesa com a Manuela D’Avilla fechando a programação, que trata das perspectivas para 2020. Teremos a presença da deputada Luiza Erundina, fechando o sábado, participando da mesa sobre o legado de Marielle Franco, com a presença da Monica Benício.

A gente aborda a questão da violência contra as mulheres por muitos aspectos porque é um debate que não está colocado na sociedade brasileira, então vamos pautar esse debate, que é fundamental para o avanço da democracia.

A Manuela D’Ávilla vai ser uma das convidadas. Ela, que chegou a ser candidata à presidenta da República, no programa Roda Viva foi interrompida pelos entrevistadores, salvo engano, por 62 vezes. O pessoal até fazia comparação com o Ciro Gomes, que tinha sido interrompido apenas oito vezes no mesmo programa. A imprensa já compreendeu a importância da questão da inserção das mulheres no poder? E o quanto você acha que a imprensa acaba atrapalhando, em vez de ajudar na compreensão dessa questão?

A gente conseguiu ganhar mais espaço nessa discussão, mas tudo é muito novo para todos. Em 2016, o primeiro ministro do Canadá montou um gabinete paritário e quando foi perguntado sobre o porquê ele disse “estamos em 2016”. Mas, no Brasil, a gente está séculos atrás.

Por isso, a decisão tão firme para de a violência política de gênero, porque nem a imprensa compreende. Esse episódio da Manuela no Roda Viva – silenciar uma mulher – é o típico caso de violência política de gênero. Querer cortar a política de cotas (de número mínimo de mulheres candidatas pelos partidos), também é. Assassinar uma parlamentar, como fizeram com a Marielle Franco, é uma violência política de gênero. Ameaçar a deputada Ale Silva do PSL por denunciar o caso dos laranjas também é violência politica de gênero.

reprodução

Festival Agora É Que São Elas (detalhe da página do evento)

Ou seja, acontece em todos os campos ideológicos, não é “privilégio” da esquerda ou da direita. Acontece com mulheres pelo fato de serem mulheres.

E teve o episódio da Maria do Rosário com o Bolsonaro. Isso não mobilizou os partidos, mas o Alckmin utilizou o caso em sua campanha politica contra Bolsonaro. Como você vê isso nas estruturas partidárias, que sabe que existe, mas não faz nada?

De maneira geral, a sociedade brasileira tem uma tolerância muito grande de violência contra a mulher. Na semana passada, saíram dados do Fórum de Segurança Pública, que mostram um aumento de estupros e feminicídio. Então, é um absurdo que isso não seja um tema na boca de todos e a sociedade não abraçar como abraçou a luta contra a fome.

O episódio da Maria do Rosario é icônico. Eu costumo comparar a violência politica de gênero com o assédio. Até 2013, ninguém fala de assédio, não era tratado como violência. Foi o movimento feminista que pautou essa questão e hoje o assédio é tipificado como crime e vários movimentos foram criados contra esse tipo de situação. Movimentos que reprogramaram a sociedade.

A violência política de gênero é a mesma coisa, é o que pretendemos que aconteça e no futuro nunca mais a Maria do Rosário passe por isso. Evidente que ela sabia o que estava ocorrendo, mas se as pessoas ao redor não reconheciam o episódio como violência política de gênero, isso teve uma força menor.

A gente tem que lutar para que o ambiente para essas mulheres não seja uma guerra. Que elas sejam eleitas e não se sintam “indo pro Iraque”, que elas se sintam apenas indo trabalhar.

Você disse que tem tudo a ver essa mobilização das mulheres também em relação à greve global pelo clima. A gente tem a Greta Thunberg, que é uma menina de 16 anos que está nos Estados Unidos e está liderando esse movimento, que ela mesma começou com uma greve na escola dela, foi ao Congresso dos Estados Unidos, que tá falando “quero que vocês se unam à ciência, é preciso ouvir a ciência”. Ela está dando esse grito. Fale um pouco desse simbolismo.

A Greta é a nova política. Esses estudantes, essas meninas, que saem da sala de aula e ficam sentados na porta da escola, afirmando “eu não vou ter aula, porque o meu futuro está comprometido”, isso é a nova política. Não é essa coisa hedionda, que tem aí e que se coloca como nova política, mas na verdade é o esgoto da política.

É tudo muito inspirador (a nova política) você começar um movimento na porta da sua escola e, dois anos depois, isso estar dentro do Congresso americano, apesar de todas as resistências ao crédito de que de fato existe uma mudança climática – e isso a gente sabe que é fruto de lobby de grandes empresas de petróleo, tem muita gente ganhando com isso, né?. Eu acredito muito nesse movimento, fiz meu mestrado sobre esse assunto, a questão da mudança climática

Fale um pouco do seu mestrado

Meu mestrado foi sobre narrativas a respeito do fim do mundo, porque o que a gente está vivendo é um fim do mundo. É um fim do mundo lido como esse mundo onde homens criaram essa estrutura – que é uma estrutura capitalista –, onde o homem está no topo da pirâmide do poder e, na verdade oque se coloca com a mudança climática e com o fim desse mundo é tão marcado por essa lógica masculinista.

Na minha a visão se coloca (com o fim desse mundo gerido por homens) a possibilidade de você ter um mundo em que você tenha seres com valores mas igualitários. E aí eu tô falando de homens e mulheres, mas tô falando de plantas, eu tô falando da natureza também.

Porque eu não acredito que, no século 21, à luz da crise que a gente está vivendo, a crise climática, a gente possa pensar apenas no direito humano de ter acesso à água (por exemplo), embora no Brasil a gente tenha tanta gente que ainda nem têm esse direito garantido.

Mas eu acho que a gente também tem que pensar no direito da água. No direito dos rios, no direito das florestas. A Floresta Amazônica tem direito de existir por si mesma. E isso já é reconhecido em constituições de países como a Bolívia, por exemplo. Tem rios na Ásia que já têm seu próprio direito de existir como tal. Isso que a gente chama de cosmopolítica, esse é um debate bem avançado feito no campo da ecosofia.

Esse campo tem no Brasil resentante muito importante, que é o Eduardo Viveiros de Castro, que é um antropólogo. Na França tem o Bruno Latour, tem a Donna Haraway. Mas isso é um debate muito de ponta, em que o Brasil, à luz deles, ainda está na Idade da Pedra.

Hoje (sexta, 20) um dia de as pessoas de modo geral saírem pras ruas, importante dar essa visibilidade (à causa ambiental). A gente costuma falar muito de “pautas da esquerda”, ou “pautas de direito dos trabalhadores”, mas meio ambiente é um “fura-bolha”

Com certeza, meio ambiente é um um fura-bolha total. E assim, a questão é “que trabalhadores a gente está pensando pro século 21?” Essa lógica capitalista tradicional, ela está colocada em questão quando você tem esse avanço da tecnologia. De alguma maneira o avanço da tecnologia vai levar a gente ao ponto que o Marx falou de você ter o fim do trabalho.

E ali, de alguma maneira, você não deixa de ter o fim da luta de classes. Porque isso vai persistir mas, com o fim do trabalho, você tem mais tempo livre para todo mundo. Como é que a gente vai repartir toda essa riqueza que foi gerada para que você tenha um mundo mais igualitário pra todo mundo?

Fazendo referência ao episódio da Manuela D’Ávila, ela foi interrompida não só por ser mulher mas por ser mulher e de esquerda. Você falou também dessa questão do feminismo liberal. Existem formas distintas de inserção da mulher na política então. Como você avalia isso e como você vê a participação – principalmente parlamentar –, hoje, das mulheres no Congresso Nacional?

A bancada das mulheres aumentou em 50% e isso não é à toa. Isso aconteceu porque em 2018 houve uma vitória histórica que foi a conquista de 30% do fundo de campanha dos partidos (para ser usado por mulheres em candidaturas do Legislativo).

Isso é fruto de muito trabalho, muita luta das mulheres, porque havia o reconhecimento de que a maior barreira para a presença das mulheres na política era o financiamento de campanha. Então esse foi o ponto tocado no ano passado.

Todas as pesquisas indicam que a segunda maior barreira para a presença de mulheres na política é a violência política de gênero. Por isso que a gente esse ano tá pautando esse tema. A gente está agindo de uma maneira muito articulada com o que outras mulheres fizeram antes de nós para que a gente possa expandir essa presença.

Agora, tem uma questão que é o seguinte: estar presente no Congresso não significa necessariamente ter uma uma eficácia política, né? As mulheres que estão ali ainda tem muitas delas construindo seu espaço, para que a presença delas seja eficaz como propulsora e construtora de políticas.

Óbvio que se você vai falar de Maria do Rosário, de Érika Kokay, são deputadas muito experientes, muito eficazes, muito presentes e conhecem as regras do jogo. Então acho que tem aí uma nova geração que é absolutamente necessária que está construindo seu espaço de eficácia ali ainda.

Pra encerrar, dá detalhes do Festival Agora é Que São Elas. Os horários dos debates etc.

Pra quem está em São Paulo, o convite é para os dias 21 e 22 de setembro, no Centro Cultural São Paulo. É um evento é gratuito que rola a partir da uma da tarde, com mostra de cinema, show, exposição, performances, leitura de poesia, rodas de conversa, mentoria, oficina e debates.

É uma programação ampla, que acolhe todos os tipos de interesse, acolhe mulheres e homens. É um convite pra todos irem nesse evento que é protagonizado por mulheres porque a gente entende que é muito importante que as mulheres terem um lugar de expressão nessa nossa sociedade.

O Centro Cultural São Paulo, fica na Rua Vergueiro, 1000, região central da cidade. Ao lado da estação Vergueiro da Linha Azul do metrô.

Assista: