Ocupações

Cerca de 8 mil moradores de São Paulo vivem em barracos em frente à Marginal Tietê

São Paulo também tem a segunda maior ocupação vertical da América Latina

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ocupação Douglas Rodrigues do alto: terreno de 50 mil metros quadrados tem 2.620 barracos

São Paulo – Com 2.620 barracos, a ocupação Douglas Rodrigues sobrevive em uma privilegiada localização na capital paulista, de frente para a Marginal Tietê e próxima à Rodovia Presidente Dutra. Os moradores se beneficiam da estrutura da região norte da cidade, como shopping, centro comercial, rodoviária, escolas e postos de saúde. O nome da ocupação é uma homenagem a um estudante de 17 anos morto por um policial militar que patrulhava a região, em outubro de 2013.

Ao passar pelos portões de entrada – a comunidade é cercada por muros –, barracos de madeira e alvenaria, de até dois andares, pequenas vielas, chão de terra batida, esgoto a céu aberto, cachorros e crianças compõem o cenário. O tamanho impressiona.

Toda eletricidade e a água da ocupação vêm de ligações clandestinas. A ocupação se formou há exatos dois anos, em agosto de 2013. As primeiras famílias a chegarem ao terreno de 50 mil metros quadrados tiveram de enfrentar o mato alto, os animais peçonhentos, como cobra e escorpião, além de “remover” uma “lagoa” que se formou ali, já que o terreno era leito do Rio Tietê.

No Movimento Independente de Moradia de Luta por Habitação da Vila Maria, 14 pessoas coordenam e tentam manter a ordem entre os mais de 8 mil moradores. Um dos coordenadores José Miguel da Silva, 59 anos, diz qual a regra mais importante dessa pequena cidade: é proibido construir barraco para depois vender.

Os líderes da comunidade tentam conter também a chegada de aproveitadores, como donos de lojas de materiais de construção, que tentam fazer da ocupação depósito para guardar tijolos, telhas, cimento. “O espaço aqui é para moradia, para quem está precisando”, diz José Miguel. Apenas pequenos comércios como mercadinho, quitanda, salão de cabeleireiro, padaria e lanchonete são permitidos.

Dívida bilionária

A aparente tranquilidade na comunidade esconde o temor das famílias de, a qualquer momento, terem de deixar suas casas. A 1ª Vara Civil do Fórum de Tatuapé havia determinado a reintegração de posse do local para 9 de setembro.

Na última sexta-feira (4), entretanto, o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, José Reinaldo Nalini, adiou a retirada dos moradores, acatando um pedido da prefeitura, com apoio da Secretaria de Segurança Pública do estado e do Ministério Público. Por questões de segurança, a prefeitura solicitou que o caso seja analisado pelo Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (Gaorp) antes do cumprimento da retirada dos ocupantes. Uma ação de reintegração de posse ofereceria riscos à população e grandes prejuízos à cidade, já que parte da Marginal Tietê precisaria ser interditada.

O Gaorp, órgão coordenado pelo Tribunal de Justiça, foi criado no ano passado, após violenta reintegração de posse na Avenida São João. Com representantes das três esferas públicas (municipal, estadual e federal), o grupo busca a conciliação e a resolução pacífica de conflitos fundiários.

Essa foi a quinta vez que os moradores sofreram ameaça de despejo.

Antes de servir de morada às 2.620 famílias, o local funcionou como depósito da transportadora de caminhões Dom Vital. Os antigos galpões, abandonados há mais de 20 anos, ainda existem e hoje foram transformados em uma imensa residência coletiva. Cada família se organiza como pode, instalando tapumes que servem de divisória para dar mais privacidade.

Proprietária do terreno, a Ideal Empreendimentos S/A, pertencente ao Grupo Tenório, tem dívida estimada em mais de R$ 1 bilhão em impostos com a União, segundo ofício da Procuradoria-Geral da Fazenda obtido pela reportagem da Agência Brasil. De acordo com o documento, a Receita Federal identificou a criação, pelo grupo, de inúmeras empresas de fachada com o intuito de deslocar o capital sem ligá-lo aos passivos tributários.

Para garantir o pagamento de parte da dívida bilionária, a Fazenda Nacional obteve a penhora e o bloqueio da matrícula do imóvel, registrado no 17º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo. Para os procuradores da Fazenda, o custo social de uma reintegração é “desnecessário e demasiadamente alto”. “Haverá o desalojamento traumático de grande número de pessoas, dentre elas mais de 4 mil crianças e jovens”, diz o documento.

Para a defensora pública do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo, Luiza Lins Veloso, que acompanha o caso, a reintegração de posse também não seria vantajosa para o proprietário, já que ele teria de arcar com os custos dos caminhões e dos ajudantes para fazer a retirada dos pertences das famílias. “Tudo isso com o imóvel penhorado, que será entregue à União”, explica.

A defensora defende o deslocamento de competência do caso. Na avaliação dela, no momento em que a União demonstra interesse no processo, o julgamento deve ser feito pela Justiça Federal. Apesar do adiamento da reintegração de posse, o processo continua na Justiça Estadual, e os moradores ainda correm risco de serem removidos.

“A ideia é que o imóvel passe para o patrimônio da União e que não haja reintegração de imediato. Haveria uma tentativa de encaminhamento [do imóvel] para as famílias. Não precisaria da execução da ordem”, disse a defensora.

A reportagem conversou com a advogada Maria Rafaela Guedes Pedroso Porto que representa a Ideal Empreendimentos. Ela afirma que as dívidas e o possível penhor da área são questões alheias ao pedido de reintegração de posse.

No mês passado, a prefeitura deu um passo importante em favor dos moradores, ao publicar, no dia 4 de agosto, o Decreto de Interesse Social, que pode resultar na desapropriação da área para habitação social. O local está inserido na Zona Especial de Interesse Social – 2, o que significa que a região tem potencial para construção de moradias populares. Os moradores defendem que o local seja transformado em um empreendimento do Minha Casa, Minha Vida 3.

Região de conflitos

A ocupação se localiza no centro de uma região de intensos conflitos sociais. A morte do estudante Douglas Rodrigues, de 17 anos, em 2013, ganhou grande repercussão depois de testemunhas terem contado que, durante a abordagem, o policial militar não saiu do carro e que o jovem não esboçou reação. Ainda segundo testemunhas, ele apenas perguntou, logo depois de ser atingido: “Por que o senhor atirou em mim?

“Existe muita tensão com a polícia, que também está preocupada. Aquela é uma região de periferia muito pobre”, diz o advogado Benedito Roberto Barbosa, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.

Moradores das favelas Marconi, Funerária e Berimbau, nas proximidades, garantem que vão se unir às famílias da ocupação Douglas Rodrigues para resistir à reintegração de posse.

A dificuldade de se relacionar com a vizinhança de classe média – há diversos prédios na mesma rua da comunidade – intensifica o clima de tensão. “Eles vivem nos filmando, tentando pegar algum ato irregular. Eles fizeram abaixo-assinado para nos tirar daqui”, conta Miguel.

A reportagem da Agência Brasil conversou com alguns desses vizinhos, que pediram para não ser identificados. Eles dizem que, após a criação da comunidade, o índice de assaltos na Rua Manguari, onde está localizada uma das entradas da ocupação, aumentou. Eles confirmam as filmagens com o objetivo de registrar atos irregulares, como a venda e o consumo de drogas na comunidade, e dizem que estão em contato permanente com o 5º Batalhão da Polícia Militar. Eles também confirmam a organização de um o abaixo-assinado que pede a remoção da ocupação.

Relatos de esperança

Apesar de toda a dificuldade e insegurança de viver em uma ocupação, os moradores mantêm firme a esperança de continuarem na comunidade. Para Queiciane Iraci, 21 anos, morar na Douglas Rodrigues significa a única chance de recuperação do seu filho Gabriel, 4 anos, que sofre de malformação na válvula direita do coração. Mãe e filho vieram da Paraíba, onde não havia estrutura nas redes hospitalares. “Eu morava em São Paulo numa casa de aluguel, pagava R$ 600 por mês. Mas fiquei sem dinheiro. Ou pagava o aluguel ou passava fome”, conta.

A malformação no coração do pequeno Gabriel deixou sequelas que o fazem ter problemas neurológicos e paralisia em todo o lado direito do corpo. Ele também não desenvolveu a fala. Em São Paulo, Gabriel tem acompanhamento médico gratuito do InCor, hospital de excelência, do Hospital do Mandaqui e faz sessões de fisioterapia e de fonoaudiologia na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD).

“Meus sonhos? Primeiro é que meu filho ande, depois é ter a minha casa. Futuramente, eu quero trabalhar para comprar as coisas para o meu filho, ele tem pouca roupa. E colocar ele na escola, para que seja um homem trabalhador”, diz Queiciane.

Dona de uma pequena quitanda na ocupação, Josefa Quitéria da Conceição, 52 anos, lucra R$ 300 por mês com a venda de frutas, verduras e legumes. Ela diz ser suficiente para pagar arcar com as contas já que não paga aluguel. “Hoje em dia eu como filé-mignon. É de porco, mas já está bom, né? Morar aqui é uma delícia. Quem mora de aluguel, tem que pagar prestação, água e luz. E tem o ‘se’. Se sobrar, você come”, diz.

Com 17 anos, João Paulo Silva Soares é quem leva dinheiro para casa. A responsabilidade chegou quando, há dois anos, seu pai foi preso por roubo de carga e um dos seus irmãos, por homicídio. Ele tem mais dois irmãos condenados por tráfico de drogas. João agora sustenta a mãe com o dinheiro recebido do trabalho em um lava-rápido, onde ganha R$ 35 por dia. “Meu sonho é arranjar um serviço bom, registrado. Ter meu carro, minha moto. Mas a primeira coisa vai ser ajudar a minha mãe, depois eu penso em mim”, diz. João quer também, um dia, voltar a estudar.

Segunda maior ocupação vertical da AL

Marcelo Camargo/Agência Brasil
Fachada da ocupação Prestes Maia, localizada na região da Luz, centro da capital

No número 911 da Avenida Prestes Maia, 378 famílias vivem na segunda maior ocupação vertical da América Latina – de acordo com o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, apenas a Torre de David, na Venezuela, tem mais ocupantes. A localização central do edifício de dois blocos, um com 22 andares e outro com nove, é uma das maiores razões para que o imóvel abandonado há décadas pelos proprietários esteja sempre repleto de ocupantes. Bastam alguns passos para chegar na estação Luz do Metrô, no Parque da Luz e na Pinacoteca do Estado.

A estimativa é que mais de mil pessoas vivam no local.  “Não tem como saber ao certo a quantidade de pessoas, pois existem desde famílias com dez crianças a pessoas sozinhas”, diz Ivanete de Araújo, uma das líderes da ocupação. No local onde funcionava uma tecelagem, famílias dividem os espaços em pequenos quartinhos. O banheiro e a lavanderia são coletivos.

O elevador deixou de funcionar e os moradores dos últimos andares precisam fazer esforço extra para chegar em suas casas. O prédio sofre com infiltração que leva bolor e mofo às paredes e enche o subsolo de água – a associação de moradores precisou instalar uma bomba para jogar fora a água excedente.

Uma das maiores preocupações do Corpo de Bombeiros, descrita em ofício anexado ao processo de reintegração de posse do imóvel, é o iminente risco de incêndio. A reportagem constatou que não há extintores em nenhum dos andares. Entretanto, há muitos fios elétricos expostos e botijões confinados sem ventilação. Divisórias de madeira completam o cenário. Não há rotas de fuga em caso de emergência e as escadas sem proteção e sem corrimão representam risco evidente, sobretudo para as crianças.

Apesar dos riscos, a moradora Maria José da Silva, 47 anos, diz que gosta da oportunidade de se tratar em hospitais do centro de São Paulo. “Se eu fosse morar longe, não sei como poderia fazer. Faço diálise três vezes na semana, segunda, quarta e sexta. Para morar longe é difícil”, diz Maria José, que sofre de problemas renais.

Antes de se mudar para a ocupação, Maria vivia em uma pensão, mas passou por dificuldades financeiras. O próprio dono da pensão sugeriu que ela fosse para uma ocupação. “Eu fiquei com aquele medo, mas eu fui obrigada a vir, porque os alugueis estavam atrasados e eu não estava conseguindo pagar.”

Sandra Regina de Oliveira, 53 anos, aproveitou a localização central de sua nova casa para tomar conta de crianças, enquanto as mães trabalham. Ela cuida de seis crianças e tem uma renda mensal de R$ 950. “Dá para sobreviver, guardar um dinheiro para um dia eu poder pagar o meu apartamento. Morando aqui, estou juntando dinheiro, em outros lugares eu não juntava.”

Para morar no local, é preciso pagar uma taxa mensal de R$ 105 que garante o fornecimento de água, energia elétrica e banca outros gastos do condomínio.

O regulamento interno proíbe a ingestão de bebidas alcoólicas, o consumo de drogas, a prostituição e agressões no prédio.

Reintegração de posse

Construído na década de 60 para abrigar uma tecelagem, o edifício foi abandonado no início dos anos 80. A primeira ocupação ocorreu em 2002, mas cinco anos depois os moradores foram removidos. Naquela época, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) atendeu 150 famílias, que se mudaram para um empreendimento em Itaquera, na zona leste. Outras 150 famílias aceitaram receber a bolsa-aluguel da prefeitura por seis meses, renováveis por mais seis.

Proprietário do imóvel, Jorge Nacle Hamuche, da empresa Axel Empreendimentos Imobiliários Ltda, contou que, após a desocupação, o imóvel ficou um ano e meio vazio, enquanto ele acertava uma parceria com construtoras interessadas em fazer escritórios no prédio.

“Mas aí eles [sem-teto] quebraram o muro e entraram novamente [em 2010]. Estragaram um monumento, um ícone na entrada da cidade”, reclama.

Desde então, os moradores enfrentaram 20 tentativas de reintegração de posse. A próxima ação de desocupação foi marcada pelo juiz Rogério Aguiar Munhoz Soares, da 15ª Vara Cível – Foro Central Cível, para 26 de setembro.

Hamuche explica que a prefeitura entrou com processo de desapropriação e que já depositou o correspondente a 40% do valor a ser pago pelo imóvel em juízo. “Mas o prédio está avaliado em R$ 27 milhões, a prefeitura avalia em R$ 22 milhões. Isso me gera um prejuízo de R$ 5 milhões”, diz o empresário.

A reportagem da Agência Brasil apurou que o proprietário do imóvel não paga o Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU) desde 1986. A dívida atualizada chega a R$ 9,1 milhões. Em 2013, o valor venal do imóvel era estimado em R$ 6,5 milhões, numa área construída de 14,3 mil metros quadrados.

Hamuche admite uma dívida de R$ 6 milhões com a prefeitura, valor que ele garante que será pago caso o imóvel seja desocupado.

Segundo ele, a intenção de estabelecer parcerias para a construção de um prédio de escritórios continua. O empresário diz que não aceitaria um novo acordo para a desapropriação.

“Eu não aceitaria nada desse prefeito [Fernando Haddad]. Foi muito injusto. Ele prejudica a população da cidade inteira, pois está gastando a mais do que pode”, diz Hamuche.

O empresário defende a construção de moradias populares em endereços mais distantes do centro o que, segundo ele, é a opção menos onerosa e mais vantajosa para a prefeitura. “Eu espero que [os ocupantes] tenham a honestidade de sair pacificamente [no próximo dia 26], porque já são quase 20 anos de moradia grátis”, afirma.

Um estudo de viabilidade encomendado pelos ocupantes para verificar a possibilidade de transformação do prédio em moradia popular, realizada pelo arquiteto Waldir Cesar Ribeiro em 2013, mostra que a estrutura e a alvenaria do imóvel estão em boas condições.

“Apresenta bom estado geral em relação à superestrutura e alvenarias, não indicando qualquer patologia importante nesse sentido, visto que não apresenta fissuras ou corrosão das armações que sugiram qualquer comprometimento estrutural”, diz o relatório.

O arquiteto constatou, porém, a deterioração das instalações hidráulicas e sanitárias, instalações elétricas, bombas, elevadores, esquadrias de portas e janelas, revestimentos do piso e paredes que precisariam ser substituídos.

Ainda de acordo com o estudo, seria necessário um investimento de R$ 14,4 milhões para que o imóvel seja transformado em um empreendimento habitacional. Esses recursos seriam suficientes para 300 apartamentos com área privativa de 38 metros quadrados.