Até ministro vira fotógrafo em evento com catadores de materiais recicláveis

Em evento marcado por quebras de protocolo, Lula ainda disse temer 'cartão vermelho' da primeira-dama, Marisa Silva, por se alongar demais nas atividades. No fim, criança interrompe discurso do presidente para desejar Feliz Natal

Ministro Márcio Fortes demonstra habilidades em outra área, a de fotógrafo (Foto: Gerardo Lazzari/Sindicato dos Bancários SP)

Márcio Fortes bate fotos usando um celular. O cenário retratado pelo ministro das Cidades é formado por Luiz Inácio Lula da Silva e uma fã cujo nome não se sabe, provavelmente uma moradora de rua. A poucos metros dali, o senador Eduardo Suplicy tasca uma “autofoto”, como virou moda em tempos de câmeras digitais, com outra admiradora.

Não é todo dia que ministros de Estado e senadores estão nessa posição. Muito menos do presidente da República tão próximo de admiradores. São alguns detalhes do padrão de “protocolo zero” que marcou a sétima participação de Lula no Natal da população em situação de rua e dos catadores de materiais recicláveis. O ato no centro de São Paulo ocorreu em meio a muito calor e inúmeros discursos, místicas, músicas e encenações teatrais e muito discurso de improviso feito pelo presidente.

Em uma dessas inserções culturais, o ator não tinha muita ideia de seu texto. Interrompeu a cena e foi buscar, no meio da plateia, uma folha de papel com suas falas. Só aí foi adiante, com o texto jogado ao chão e o corpo completamente curvado para dar conta de ler o manifesto que lhe pertencia.

Apenas mais uma das passagens que reforçaram o gracioso caráter do evento, que deixou o presidente à vontade em meio a um povo que, a julgar pelas declarações, tem admiração ilimitada por ele. Os sempre sisudos seguranças do Planalto deixaram Lula ser ser rodeado de gente, abraçado, fotografado e beijado. Recebeu, com ar de cansaço mas sorridente num evento que durou três horas e meia, incontáveis presentes, autógrafos e bilhetinhos.

Com a presença de cinco de seus ministros, deputados federais e estaduais, senadores e representantes da Igreja Católica, o presidente assinou o decreto que cria a Política Nacional para a População em Situação de Rua que ficará à cargo da Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Entre outras coisas, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ficará encarregado de fazer a primeira contagem oficial dos moradores de rua, item fundamental para garantir a formulação de políticas públicas. Além disso, o setor produtivo ganhará isenção de impostos caso faça a compra de materiais recicláveis diretamente dos catadores.

Maria dos Anjos, coordenadora do movimento Unificação das Lutas de Cortiços, veio às comemorações dos últimos anos e considera que é sempre “um momento superagradável, onde o presidente quebra o protocolo”.

– Vocês vão apresentar alguma reivindicação?, pergunto.
– Hoje é ele que apresenta para nós. Já apresentamos as nossas e estamos esperando a resposta.

Pelo visto, a resposta agradou. Maria dos Anjos foi às lágrimas quando soube que o prédio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) na Rua Conselheiro Crispiniano, na região central da capital paulista, será doado para serem convertidos em apartamentos populares. Não é o único: os ministérios anunciaram a aquisição, reforma e doação de um lote de 25 imóveis em diferentes partes do país para a moradia popular.

Mas o presidente quer acelerar o passo e cobrou do Ministério das Cidades o mapeamento das necessidades da população em situação de rua para garantir a execução de medidas no próximo ano. Em 2010, será o momento de consolidação das políticas elaboradas ao longo dos dois últimos mandatos.

O risco de perda dessas políticas provoca medo em Francisvaldo Paixão, representante dos moradores de rua de Fortaleza que veio a São Paulo especialmente para o evento. Quando ficou desempregado, ele acabou na rua e hoje, um ano depois de reconquistar a moradia, segue lutando pelos companheiros de tempos complicados. “Nosso grande temor é que todo esse trabalho possa cair no esquecimento. Independente de ser o Lula ou não, o importante é assinar o decreto para que isso fique”, argumenta.

Ordem no samba

Os mestres de cerimônias não são os tradicionais engravatados, barbeados e de português protocolar. O primeiro deles veste roupas brancas e largas, mais para Ano Novo que para Natal, tem uma longa barba grisalha e não precisa de papéis para auxiliar na apresentação. Mais tarde, é substituído pelo padre Júlio Lancellotti e por Anderson Lopes Miranda, um rapaz de 31 anos, metade deles passados na rua.

Antes mesmo da entrada das autoridades, os apresentadores do evento puxam o coro com gritos de “o povo, unido, jamais será vencido” e “um, dois, três, chegou a nossa vez”. Claros admiradores do atual governo, entremeiam as falas dos convidados com apoios e complementos e tentam evitar que as fotos ao lado do presidente se transformem em um ritual natalino, atrapalhando o andamento do evento. “Fotos depois, pessoal, depois o presidente vai tirar foto com todo mundo”, pede Anderson, tentando botar ordem na agitação. 

De repente, são interrompidos por um sambinha feito em homenagem a Lula que se aproxima sorridente para ouvir com atenção. A letra não se entende bem, menciona Barack Obama para lá, George W. Bush para cá, e inclui algo que de “Lula manda no país”. Mas é suficiente para o presidente voltar a sua cadeira de plástico admirando a homenagem.

Na sequência, já com microfone em punho, afirma que quer evitar improvisos no discurso porque não pode se prolongar, sob pena de perder minutos preciosos. Não que ele esteja com pressa para os próximos eventos. Já que neste clima de fim de ano a vida de todos virou livro aberto. Lula relata que Dona Marisa, a primeira-dama, está em casa com o cartão vermelho a postos, e ser expulso de casa no Natal, “época em que mais precisamos de chamego”, não seria bom negócio. O público gargalha com o comentário.

Negócio ruim mesmo é tomar esguicho de água quando se está dormindo, acusam os moradores de rua. Eles reclamam que não têm a oportunidade de serem ouvidos, que falta comunicação com o poder público e que o trabalho em São Paulo é feito pelas organizações sociais, e não pela prefeitura.

É bem provável que o presidente não tenha tido a oportunidade de ouvir metade de todos os discursos: enquanto as pessoas se revezam ao microfone, outras tantas abraçam Lula e tiram fotos, dão presentes e arrancam gargalhadas em meio ao calorão que castiga os aproximados 2 mil espectadores na Quadra dos Bancários. Há um grupo de dança formada por meninas de movimentos de moradia e um senhor de 76 anos que veio assistir ao evento.

Até mesmo quando está falando Lula é surpreendido. A platéia, nada convencional, não se limita aos protocolares aplausos. Há gritos de apoio, pedidos de atenção para determinados temas e acusações contra tucanos e Democratas. Uma menina, de no máximo seis anos, corre para chamar o presidente.

Ao microfone, interrompendo o discurso, oferece a todos “Feliz Natal”. É a senha para que Lula interrompa sua fala e dê um abraço longo na garotinha que agarra forte seu pescoço. Já corre a tarde paulistana, o discurso vai pra lá de meia hora e Dona Marisa espera-o em casa. Mas, para chegar ao descanso, ele precisa vencer a barreira de beijos e abraços pelo caminho. E são muitos.

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