União Européia: Arca de Noé ou Titanic?

Por dever de ofício, os arautos da direita brasileira se sentem na obrigação de descrever o Brasil como o país dos problemas sem solução (enquanto a coligação popular estiver no […]

Por dever de ofício, os arautos da direita brasileira se sentem na obrigação de descrever o Brasil como o país dos problemas sem solução (enquanto a coligação popular estiver no poder…), os Estados Unidos ainda como a “terra das oportunidades”, e a Europa…, bem a Europa como uma espécie de “mundo de Sissi”(com perdão da Romy Schneider, uma grande atriz), bonitinho, arrumadinho, cheio daquelas torrezinhas e casinhas de tijolinho vermelho que encantaram a minha infância. Ou um mundinho de casitas suíças ou tirolesas onde só Gepetos e Pinóquios habitam. Onde politicamente, só há gente madura e organizada.

No real, a realidade é bem outra. Ainda mais hoje, quando a crise econômica, deflagrada entre setembro de 2007 e outubro de 2008, continua devastando as economias da União Européia e suas proximidades.

Pela primeira vez em tais letras graúdas, um artigo de jornalista conceituado descreve o que pode vir a ser uma “implosão da zona do euro”, como é chamado o conglomerado de economias sob a nova moeda (e o novo Banco Central Europeu) criada em 2002. Trata-se de um artigo do jornalista Peter Oborne, colunista do britânico Daily Mail, mas publicado na revista The Observer, seção de artigos de fundo do diário The Guardian.

Peter Oborne, hoje com 52 anos, é descrito por seus colegas jornalistas britânicos como um “conservador da cepa”, ou “à antiga”. Isso quer dizer que ele é um conservador que leva a sério seu conservadorismo, não o esconde, não se disfarça, nem disfarça sua ligação com uma certa ala do Partido Conservador. Defende ostensivamente a família, os bons costumes, a pouca intervenção do estado na economia, e ao mesmo tempo defende o pequeno comércio, a transparência na gestão pública e privada. Atacou com veemência o primeiro ministro Tony Blair e a intervenção britânica no Iraque; o primeiro, porque mentiu para o público britânico para justificar a segunda; e esta, porque atrelou definitivamente a política da Ilha de Sua Majestade à despótica, tirânica e algo suicida política de George Bush Filho.

Oborne é um “eurocético tradicional”, ou até mesmo um “eurocontra”. Isto é, não vê a União Européia com otimismo desde sempre. Talvez por ter presenciado, em 1992, o desastre a que a adesão da Grã-Bretanha ao “Mecanismo de Taxa de Câmbio” europeu levou a política dos conservadores, fazendo o governo despender bilhões de libras de modo infrutífero na tentativa de manter a moeda valorizada frente ao marco alemão, pressionado pela reunificação das Alemanhas. Foi o que abriu caminho para os trabalhistas de Tony Blair na década seguinte.

Mas no seu artigo ele chama a atenção para uma série de fatos relevantes, ainda que se possa discordar de sua radical conclusão, isto é, a de que a União Européia (ou mais especificamente a zona do euro) já está irremediavelmente fadada à implosão.

Partindo do artigo, mas também dele se distanciando um tanto e misturando-o com outras informações, pode-se adiantar a visão de que, se o euro, como moeda unificada de uma Europa unificada, é freqüentemente descrito como uma verdadeira “Arca de Noé”, de salvação na catástrofe da crise, ele dá sinais também de poder ser um verdadeiro Titanic, cujo tamanho tira de seus tripulantes (mais do que de seus diretores…) a possibilidade de manobrar rapidamente num oceano sobrecarregado de armadilhas.

Na Alemanha, por exemplo, a atual situação é crítica, mas não tão devastadora, por exemplo, quanto na Espanha. Na Alemanha a taxa de desemprego está nos 8% da mão de obra ativa. Isso já é alto. Diariamente uma tropa de pequenos negócios entra no brete do abate. Isso é um fato visível a olho nu. Mas o ainda forte (embora vá piorar, com a nova coligação CDU/CSU – FDP no poder) sistema previdenciário alemão segura as pontas.

Na Espanha, essa taxa está em 20%. Entre os jovens (16 – 24 anos), essa taxa chega a absurdos 42%.

O desemprego da juventude chega a 25% na Grécia, aos 27% na Itália, e passa dos 28% na Irlanda. Devasta a vizinha Islândia e seus 300 mil habitantes. A Islândia não entrou na União Européia. Mas como a Irlanda, tornou-se na última década uma das meninas dos olhos e dos investimentos da EU(sobretudo da Holanda) e também da Grã-Bretanha. Resultado: teve de pagar a esses países mais do que o seu orçamento em educação como ressarcimento de investidores que perderam dinheiro com a quebra de seus três maiores bancos. Isso se traduz em políticas violentas de cortes na previdência e outros investimentos sociais. Mais da metade dos jovens entre 18 e 25 anos deve emigrar nos próximos meses. Na Grécia o governo socialista que assumiu o poder em outubro do ano passado teve de rever a previsão de déficit orçamentário para o próximo ano, de 6,7 %  (dado do governo conservador anterior) para 12,7%. O débito do setor público chegou a 125% da renda nacional anual. Ou seja, Islândia, Grécia, e provavelmente Espanha e Itália terão de bater às portas da União Européia e do FMI ;pedindo ajuda. A Islândia talvez tenha de aderir à zona do euro – não mais como menina dos olhos dos investidores, mas como mendicante em andrajos.

Trocando em miúdos – ou em graúdos – a zona do euro está criando a sua própria “neo-periferia”. Ela pode ser a Arca de Noé para alguns e ao mesmo tempo o Titanic para muitos. Voltando ao artigo de Oborne, para o jornalista conservador isso se deve ao fato de a União Européia ter criado uma unidade monetária antes de criar uma unidade política. Para ele, a União Européia foi criada (e não é uma lógica de esquerda, veja-se bem, a ditar essas palavras) por e para banqueiros, para atacar “o modo de vida do trabalhador comum” (sic!) através da imposição de uma desregulamentação unificada de relações de trabalho (sic, sic, sic!), “para eliminar barreiras comerciais e borrar fronteiras nacionais” mas apenas em função de “criar mercados eficientes e maximizar os lucros”. Tudo isso embalado por uma retórica (que poderia muito bem caber nos nossos tradicionais defensores do “império dos mercados”) do que ele chama de “sadomonetaristas”.

Aponta o jornalista que, na sua visão, isso se deve a uma nova forma “pós-moderna” de democracia, que é a da “democracia sem povo”. Por isso, diz ele, há um vácuo por detrás das políticas implementadas, um vácuo de perguntas que “sequer podem ser formuladas”. É isso, diz ele, que impede que os partidos que tradicionalmente deveriam assumir o interesse dos trabalhadores e dos sindicatos organizados o façam. Ele refere-se, naturalmente, a partidos como o social-democrata na Alemanha, o socialista na França, na Espanha e na Grécia. Para ele isso vai levar a uma situação que o seu pensamento conservador rejeita, que é a do crescimento dos partidos mais à esquerda [como já ocorreu em Portugal e na Alemanha]. Mas também, adverte ele, isso deixa um campo aberto para partidos de extrema direita, com sua pregação nacionalista à européia, que é sempre (ao contrário da nossa tradição latino-americana) excludente e xenófoba [como já ocorreu na Áustria, na Suíça e na Hungria e, de certo modo, na Itália de Berlusconi]. E o pesado fardo da moeda única impede a observação de soluções tradicionais, como a de, por exemplo, a Espanha poder desvalorizar a sua antiga peseta para tornar-se competitiva e gerar negócios externamente e empregos internamente.

Discordo de Oborne quando ele diz que por isso a União Européia está na franja do colapso, embora isso possa levar algum tempo. Também discordo do viés conservador de suas soluções, como a da diminuição das intervenções estatais (afinal ele vê a história da União Européia como uma sucessão de vigorosas intervenções dos estados na vida política). Também discordo de que não seja possível chegar a um equilíbrio econômico através da organização de mecanismos supra-nacionais, como são o euro e a União Européia [e o Mercosul]. A questão, sim, é como furar o bloqueio conservador e como reverter o quadro de dominância de “virtudes neo-liberais” que tomou conta dos partidos antigamente de centro-esquerda na política européia.

Agora, que ele botou o dedo em algumas feridas, botou.