Entre o anjo e o refrigerante – visita a Praga, capital da República Tcheca

A Rede Brasil Atual oferece a oportunidade de uma visita virtual à cidade de Praga, considerada uma das capitais do estilo barroco, acompanhando o olhar do nosso colaborador na Europa, Flávio Aguiar. Leia o texto e clique nas palavras assinaladas para ver as fotos correspondentes

Anjo barroco “luta” com o refrigerante por espaço (Foto: Flávio Aguiar)

Viajamos de Berlim, na Alemanha, à Praga, na República Tcheca, de trem – eu, minha esposa, uma filha e uma neta. A linha segue o vale do rio Elba, entre morros povoados por pequenas vilas e fortalezas medievais, algumas em ruínas.

Chegar em Praga – Praha, em tcheco – assusta um pouco. A princípio, não se entende nada do que está escrito. Os guichês de informação estavam fechados, embora estivéssemos no meio da tarde. As lojas de câmbio abrem apenas por poucos minutos, logo depois da chegada dos trens, e fecham em seguida. Tínhamos instruções sobre como ir de metrô até o hotel reservado. Mas o guichê de venda de passagens também estava fechado. Comprá-las, só na máquina caça-níqueis.

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Ruínas na viagem (2)
Vitral de Alphnse Mucha (10)Clique aqui para ver a galeria de imagens da viagem de Flávio Aguiar a Praga

Mas ali essa máquina só caçava níqueis. E quem os tinha? E onde consegui-los? Perguntar não é fácil, e não só por causa da língua. Algumas caras se fecham, sem dar resposta (comentarei isso depois). Mas sempre se consegue alguma ajuda. Um funcionário de uma loja de câmbio foi simpático, reabriu o guichê, e conseguimos com ele as abençoadas moedas.

Daí tudo ficou mais fácil. Tendo-se os nomes corretos, orientar-se no metrô e depois pelas linhas de bonde da cidade é muito fácil. O transporte é eficiente, e para quem vem do Brasil de cinquenta ou sessenta anos atrás, encontrar um bonde é sempre matar uma enorme saudade… Como disse o escritor e meu amigo Moacyr Scliar, o bonde não é só um meio de transporte, é um estilo de vida.

Para começo de conversa, Praga deslumbra logo de saída. Depois de ir ao hotel, chegamos ao centro da cidade ao entardecer. E logo fomos apresentados ao rio Vltava  (em tcheco), Moldau nas línguas latinas e em alemão. O rio corta a cidade em duas , e é uma espécie de alma da cidade, guardando histórias e segredos.

Seu principal ponto de atração é a Ponte Carlos (Karluv Most em tcheco, Charles Bridge na maioria dos guias turísticos), construída pelo arquiteto Peter Parler no século XIV. Fica entre a Cidade Velha e o morro do Castelo (falaremos disso também mais tarde). A Ponte Carlos  é a Meca, o centro nervoso de ambulantes e turistas, que são (ambos) milhares, a circular continuamente. Portanto, cuidado: é também o foco principal de batedores de bolsa e de carteira, ávidos por dinheiro e cartões de crédito. Leve no bolso apenas o necessário; cartões, só se deles tiver necessidade e certeza de usá-los; quanto ao passaporte, deixe-o no hotel, ou onde estiver parando, e leve uma cópia xerox, que também é aceita como documento por muitos negociantes. A moeda oficial é a coroa. Na cotação oficial, um euro vale 24 coroas e um dólar, 16,7. Isso quer dizer que um real vale mais ou menos 8,50 coroas. Mas se vier para a Europa, traga euros, não dólar; e em Praga ande e pague com coroas.

Na Ponte Carlos, além dos mascates e dos turistas, encontra-se uma galeria de 30 estátuas de santos. São reproduções: as originais, de épocas diferentes, estão nos museus da cidade. Mas são impressionantes. A mais importante é de São João Nepomuceno , padroeiro do país, entre outras “padroagens”: ele é protetor contra calúnias e indiscrições, e também contra inundações. Protege as pontes, seus construtores e usuários, além de ser o santo dos confessores. Tudo isso se explica pela sua biografia, ou legenda, como se queira.

Jan Nepomucký nasceu no lugar desse nome por volta de 1345, estudou Direito na Universidade de Praga e na de Pádua, na Itália. Tornou-se padre e Vigário Geral de Praga, sob o reinado de Venceslau IV. Dizem as versões que ele era o confessor da rainha, e que o rei, ele mesmo um folgazão com outras mulheres, enfiou na cabeça que ela teria um amante. Pressionou sem resultado o confessor, mas como este, em obediência ao segredo da confissão, nada lhe disse, mandou torturá-lo, matá-lo e jogar seu corpo da ponte. Hoje ali está a estátua do santo, e tocar sua base é sinal de boa-sorte.

Histórias como essa são testemunho da presença da religiosidade em Praga, algo tenso, como toda a história da cidade. Para dar uma olhada nisso, atravessemos primeiro a ponte em direção ao lado do Castelo de Praga , uma fortaleza gigantesca erguida sobre o morro que domina a cidade e a região. Tanto a sua visão quanto a sua visita nos trazem à mente que o romance alegórico de Franz Kafka (1883-1924), “O castelo”, cujo cenário é o de uma vila dominada por um enorme palácio onde reina uma burocracia absurda, pode ter um viés “realista”. Hoje se tornou um lugar comum dizer que Kafka antevia o regime comunista; ele via, na verdade, a enorme burocracia dos monarcas e das repúblicas da Europa, cercadas e permeadas pelo crescente anti-semitismo.

“O Castelo” é um conjunto de grandes edificações, a começar pela Catedral de São Vito, cuja construção levou mais de meio milênio. Seu idealizador também foi Peter Parler, o mesmo da Ponte Carlos. Começada em 1344, ela só foi terminada em 1929. No seu interior, além de altares suntuosos, está o túmulo que abriga o corpo de São João Nepomuceno, e um vitral fantástico , em estilo art-nouveau, do artista gráfico Alphonse Mucha (1860 – 1939), cujo museu, na rua Panská, nº 7, também se deve visitar.

Na praça do Castelo pululam os turistas e suas máquinas fotográficas: é preciso se esgueirar entre eles. Outros pontos de muito interesse são o próprio palácio administrativo, a Catedral de São Jorge , a “Daliborka”, a prisão (que abriga ainda os instrumentos de tortura)  que leva o nome de seu mais famoso prisioneiro, Dalibor, um líder rebelde e/ou salteador de estradas, uma espécie de Robin Hood local.

Ainda no interior do Castelo, fica a chamada “Golden Lane” (em inglês), uma ruela com casinhas minúsculas que parecem ter saído de Branca de Neve e os Sete Anões. Na verdade, elas abrigavam os ourives desde os tempos medievais, e numa delas morou, durante um ano, o escritor Franz Kafka quando estudante.

Das muralhas do Castelo , pode-se descortinar uma das belezas de Praga, a profusão dos seus telhados vermelhos  cercados pelos morros verdejantes e cortejados pelo rio Moldau com seu leito principal e seus canais. Praga teve a sorte de ser praticamente a única metrópole européia (junto com São Petersburgo, na Rússia), que quase não foi bombardeada nem sofreu grandes catástrofes naturais recentemente (nos últimos séculos), embora tenha padecido de vários “terremotos políticos”.

Fechando o passeio pelo Castelo, atravessemos de novo a Ponte Carlos, e vamos em direção à Cidade Velha, novamente nadando em meio ou contra a tsunami de turistas (que S. João nos proteja contra a inundação…). Comecemos pelo bairro judaico. Esse bairro deve sua preservação em estado quase intacto a uma das megalomanias de Adolf Hitler, que queria construir ali “o museu de uma raça extinta”! Testemunho eloqüente do confinamento secular dos judeus nos dá o impressionante Cemitério.

O espaço era o do pátio de uma mansão de grande porte, mas era pequeno para abrigar, durante séculos, os mortos, cujos túmulos passaram, literalmente, a se empilhar uns sobre os outros, até formarem a imagem de uma “Babel do além” , só que numa única língua e numa única crença. A sinagoga, onde infelizmente as fotos são proibidas, nos dá outro testemunho impressionante, com os nomes dos mortos no holocausto escritos nas paredes e centenas de desenhos das crianças que eram deportadas para os campos de concentração/extermínio.

Do bairro judaico, pode-se ir a pé até a Praça da Prefeitura Velha. No caminho, encontram-se curiosidades, como o relógio com números em hebraico e cujos ponteiros giram no sentido anti-horário . Na praça, vê-se o grande relógio astrológico de 1572, que “toca” e “canta” na hora certa, além de mostrar o zodíaco e o movimento dos planetas, do Sol e da Lua. Mais adiante, vê-se a casa de infância de Kafka, e do outro lado da praça, a estátua em homenagem a Jan Hus , o reformador protestante que foi reitor da Universidade de Praga, a mais antiga da Europa em língua alemã. Acusado e preso pela hierarquia católica, Hus foi queimado na Alemanha em 1415.

Hoje em dia Praga administra sua história com algumas dificuldades. Depois da Segunda Guerra Mundial e do fim da ocupação nazista, durante a qual houve um notável movimento de resistência, a Tchecoslováquia (hoje República Tcheca e Eslovênia, dois países diferentes) tornou-se um dos únicos países onde os comunistas chegaram ao poder pelo voto direto, em 1946. Depois, nos anos sessenta, foi sede da chamada “Primavera de Praga”, liderada por Alexander Dubcek, um movimento que nada tinha de anticomunista mas defendia a liberalização do regime. Sufocada em 1968 pelos tanques soviéticos, a “Primavera de Praga” tornou-se um dos símbolos da repressão dos regimes do Leste Europeu.

Hoje em dia restam poucas lembranças positivas dos tempos heróicos da Segunda Guerra e da confraternização entre tchecos e soviéticos. Um dos únicos é a estátua, que encontramos depois de uma longa caminhada, na praça em frente à Estação Ferroviária, em que um guerrilheiro da Resistência abraça um soldado russo. Em lugar dessa esquecida fraternidade, encontra-se pela cidade, como na Praça Venceslau, um verdadeiro Panteão Nacional, memoriais das vítimas da repressão de 1968, e símbolos grotescos que ridicularizam o comunismo, como a caricatura vampiresca das tão simpáticas bonequinhas russas, as Matrioskhas.

Uma visão maldosa dirá que Praga é uma reserva barroca e também do estilo art-nouveau, do começo do século XX, ocupada pelo que a herança comunista deixou de pior e pelo que o novo capitalismo triunfante trouxe também de pior. Em meio à maré de turistas, de fato, os preços são inconfortáveis e muitos serviços são ruins; em alguns restaurantes, são os funcionários que reclamam dos fregueses, não o contrário. Minha filha foi chamada a atenção por uma garçonete porque pegou um guardanapo na mesa ao lado.

Mas não se deixe abater nem levar por essas imagens negativas. Para comer, procure fugir dos lugares ou bairros turísticos, o que não é difícil graças aos eficientes e passadistas bondes. Se não adianta pechinchar preços nas feiras e mercados, adianta sim procurar melhores preços antes de comprar ou comer. Se uma das imagens que trouxe da cidade é a da foto do anjo barroco que luta com o refrigerante por espaço vital, veja e guarde outras imagens dessa cidade de beleza e história extraordinárias. Relaxe, por exemplo, com um passeio de pedalinho nas simpáticas águas do Moldau, e com outras vistas maravilhosas da cidade.