“Entre a luz e a sombra” conta história de Afro-X e Dexter

Luciana Burlamaqui passou sete anos acompanhando vida de Afro-X e Dexter, da cela 509-E do Carandiru à liberdade provisória e às transferências para outros presídios

O filme foi feito com apenas uma câmera, sempre comandada pela diretora, que se torna testemunha do dia a dia da dupla (Foto: divulgação)

São Paulo – “Entre a Luz e a Sombra” narra a história da dupla de rap 509-E, formada nas celas da extinta Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo. Marcos e Christian, que cresceram juntos na periferia de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, voltam a se encontrar na cela 509-E do Carandiru.

Incentivada por Sophia, atriz de classe média que largou a profissão para dedicar-se à reabilitação de encarcerados, a dupla consegue gravar o primeiro CD e, com ajuda de um juiz que só aceita um “método humanista, humanitário e pacifista”, ganha autorizações para sair do presídio e realizar shows.

Marcos e Christian, agora Dexter e Afro-X, angariam espaço no mundo do rap e se tornam exemplos para quem busca reabilitação. As primeiras cenas dão espaço para que os dois presidiários contem suas respectivas histórias, o porquê de entrar no crime e como sair dele.

A diretora Luciana Burlamaqui achava que seus dias de convivência com Dexter, Afro-X e Sophia acabaria por ali, depois de umas poucas semanas. Foram necessários outros sete anos. Com mais dois e meio na ilha de edição, “Entre a Luz e a Sombra” finalmente está pronto para estrear no Brasil. O filme chega às telas em 27 de novembro com um belo cartão de visitas, o Prêmio do Público de Melhor Documentário e Menção Especial do Júri no Festival de Cinemas e Culturas da América Latina de Biarritz, na França.

O filme tem força e um rico material nas mãos: a história de pessoas que, dentro do presídio, encontraram um novo caminho. Relatos de reabilitação chovem no Brasil em que faltam oportunidades, mas debruçar-se sobre um deles durante sete anos é uma atitude corajosa que resultou em uma daquelas produções que não são de fácil digestão, que fazem o espectador refletir.

Um dos pontos altos do documentário é o embate entre a dupla e o deputado estadual por São Paulo Conte Lopes, policial militar famoso pela linha dura e inimigo dos organismos de defesa dos direitos humanos. O encontro no programa “Altas Horas”, da TV Globo, deveria debater a pena de morte, mas não chega nem à beira disso.

“O senhor acha que porque tem uma carteirinha de policial nas mãos tem o direito de matar?” é uma das acusações proferidas pela dupla contra o parlamentar, que reage aos gritos. O apresentador Serginho Groisman, antevendo o momento em que se chegaria à violência física, interrompe o debate, que acaba com aplausos da plateia para o 509-E.

Sophia

A escolha desta cena é, certamente, muito feliz. De alguma maneira, a dupla dialoga com aquele espectador que, até o momento, movia-se inquieto na poltrona, incomodado por ver dois presos que expõem mazelas da sociedade.

Sequências

A personalidade forte de Dexter trata de impor-se na primeira parte do filme, em que o cantor conquista protagonismo. É o momento em que ele está em um relacionamento afetivo com a atriz Sophia, que vira uma espécie de empresária e protetora da dupla. É ela quem marca os shows e quem trava batalhas jurídicas em busca da autorização para que a dupla possa fazer espetáculos.

É também a personalidade de Dexter que aparece como responsável por dar fim ao sonho. A briga dele com Sophia, que começa a caminho de um show e termina uma semana depois, leva não apenas ao fim da parceria. Daquele momento em diante, uma série de fatores faz com que o filme tome outro rumo.

Por pressão do deputado Conte Lopes e de altas autoridades judiciárias, as saídas da dupla para a realização de shows fica cada vez mais difícil. Além disso, Afro-X estava claramente incomodado por não ter tanta evidência quanto Dexter, e a relação dos dois entra na descendente.

O filme circula pelos bastidores das vidas da dupla e de Sophia, que deixa o trabalho com detentos depois de 20 anos e resolve passar uns tempos fora do Brasil.

Neste momento, entra em cena um juiz da Corregedoria dos Presídios de São Paulo, que é na verdade a lúcida amarração do filme. É uma rara aparição da Justiça preocupada com a reabilitação dos presidiários. Cabe a ele o título do filme ao dizer que a vida das classes médias e altas brasileiras é a “luz”, ou seja, o conforto, as oportunidades. Por outro lado, a “sombra” é a falta de oportunidades, o desalento perante à vida. No momento em que se estava fazendo evidente a existência do Primeiro Comando da Capital (PCC), o juiz declara: “A sombra veio para dizer: eu existo”.

Os anos se passam, Afro-X é libertado, Dexter não. A dupla, que já não estava em seus melhores momentos, vai se enfraquecendo até chegar ao fim. Dexter, rodando de presídio em presídio, desaparece do filme.

Quando parece que as tramas estão resolvidas, a diretora dá novo rumo à produção. Em alguns momentos, estende-se demais em certas cenas. Algo compreensível para quem reuniu sete anos de material em duas horas e meia. Para o espectador, fica o fato de que em alguns momentos o documentário prolonga-se demais em busca de justificativas. Ainda assim, mantém-se o brilho da produção de Burlamaqui, que tem espaço para desfechos surpreendentes para cada um dos personagens.