Saga nativa

Enquanto o filme Xingu relembra ao país a história dos irmãos Villas Bôas, o parque indígena que eles ajudaram a criar está sitiado pelo agronegócio

(Foto:Beatriz Lefèvre)

No Alto Xingu, a fronteira agrícola deixa a floresta do Parque acuada 

Aos 56 anos, Pirakumã Yawalapiti lembra a primeira vez em que saiu da aldeia para conhecer a cidade grande. Tinha 7 quando chegou a São Paulo na companhia de Orlando Villas Bôas, que o chamava de neto. “Eu fui criado por ele. Meu pai, Kanato, foi filho adotivo dele”, explica. Com Orlando, aprendeu o português, e dele ouviu conselhos certeiros e histórias que ficaram na memória. “Ele dizia: ‘Pirakumã, não pense que essa floresta vai ficar a vida toda assim, amanhã a cidade vai chegar na sua porta’. Não pensava que a cidade chegaria tão perto, mas hoje ela está em volta de todo o Parque do Xingu.” 

Quando esteve em Manaus para a pré-estreia de Xingu, com lançamento nacional neste mês de abril, Pirakumã estava assistindo, de alguma forma, à sua própria história. Dirigido por Cao Hamburger (O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, Castelo Rá-Tim-Bum), o longa conta a saga dos irmãos Orlando (interpretado por Felipe Camargo), Cláudio (João Miguel) e Leonardo Villas Bôas (Caio Blat). 

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A narrativa tem início no ano de 1944, quando partem para desbravar o sertão brasileiro na Expedição Roncador-Xingu. A partir daí, a aventura desses sertanistas apresenta um Brasil ainda hoje pouco conhecido: o indígena. O filme faz homenagem a esses três heróis nacionais, sem poupá-los das contradições das quais eles, mais que ninguém, eram conscientes. 

“Nós somos o antídoto e o veneno”, diz, a certa altura da trama, o narrador Cláudio Villas Bôas, referindo-se às mazelas que o contato com a civilização branca acarretava aos indígenas. Com essa lucidez, após mais de dez anos de luta, os Villas Bôas conseguiram concretizar a criação do atual Parque Indígena do Xingu (PIX), em 1961, clímax do filme. Pirakumã, que havia hospedado parte do elenco em sua aldeia, afirma satisfeito: “Agradeço muito aos que fizeram o filme, é isto que estamos procurando: algo para mostrar para o mundo dos brancos”. 

A leitura da liderança Yawalapiti é termômetro de que a intenção do diretor de considerar o ponto de vista indígena na construção do roteiro, bem como difundir a cultura indígena, foi bem-sucedida. São dois os fios condutores, de acordo com Cao. “Resgatar a história e a obra dos Villas Bôas e, através disso, mostrar e discutir o que a civilização branca tem feito”, diz.

O parque, aos 51 anos

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Os Villas Bôas, sem dúvida, enxergavam à frente de seu tempo, no que se refere tanto à valorização dos povos e culturas indígenas como à nociva depredação de que a civilização branca seria precussora. Perfeita mostra disso é a criação do Parque Indígena do Xingu, primeira grande reserva demarcada no Brasil (28 mil quilômetros quadrados), quase o equivalente à área da Bélgica. Ali vivem 6 mil pessoas, de 16 etnias.

Orlando, Leonardo e Cláudio concretizaram a criação do Parque Indígena do Xingu e salvaram da extinção várias etnias e sua cultura, além da floresta ao seu redor

“Os indígenas nunca tiveram fronteira, mas agora fronteira era a melhor coisa que poderiam ter”, conclui Cláudio Villas Bôas, enquanto elabora o projeto do parque a ser pleiteado. A ideia inovadora colocava em discussão um dos paradigmas indigenistas mais fortes à época, o integracionismo, que previa a assimilação do índio pela sociedade nacional. O costume antigo era demarcar pequenas áreas ao lado das cidades para que, pouco a pouco, os indígenas fossem se dissolvendo como comunidade, com a adoção natural da língua portuguesa e dos hábitos dos brancos, até se tornarem indistinguíveis dos demais brasileiros.

“O bastidor do debate sobre a criação do parque era se esses povos deveriam ter seus territórios e daí ter condições de se perpetuar enquanto povos”, conta André Villas-Bôas, indigenista e coordenador do Programa Xingu da ONG Instituto Socioambiental (ISA). “Essa discussão teve reflexo na legislação até a Constituição de 1988, que muda o paradigma integracionista de uma vez por todas, na medida em que garante aos índios suas manifestações e políticas diferenciadas com o objetivo de respeitar e garantir a diversidade cultural.” 

Mesmo com esse direito à diferença assegurado pela Constituição do país, o desafio apontado pelos irmãos Villas Bôas continua, em essência, o mesmo: a especulação, sobretudo, segue assolando o Xingu. Hoje, a própria fronteira do PIX é visível a olho nu. Em meio a um mar de soja e pastagens, o parque se tornou uma “ilha verde”. 

Como Orlando Villas Bôas já previra a Pirakumã, a cidade bateu na porta da floresta: desde a década de 1980, surgiram nos limites do parque oito novos municípios, além de uma grande quantidade de fazendas e estradas. Segundo dados do ISA, o desmatamento na área da bacia do Xingu em Mato Grosso que não é terra indígena ou área de conservação chegou a 5,8 milhões de hectares, ou 47% do total, em 2009.

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“O desmatamento é um fator preocupante em relação à sustentabilidade. Diminuiu, mas a região é ainda muito valorizada com a soja e o agronegócio”, alerta o indigenista do ISA. Na região há, atualmente, de acordo com a ONG, 6,5 milhões de cabeças de gado e mais de 30% das lavouras de soja de Mato Grosso. “O fogo é hoje em dia a principal ameaça à região toda, tanto dentro como fora do parque. É uma consequência do desmatamento, que trouxe mudanças climáticas: diminuiu a umidade relativa, as matas ficaram mais secas.”

Outro problema sério que os indígenas do parque enfrentam é a contaminação das águas. “As cabeceiras dos rios ficaram todas fora do limite do PIX e o Rio Xingu, que corre dentro do parque, funciona como uma espécie de ralo regional, onde deságuam os resíduos do plantio de soja mecanizada com agrotóxico”, diz André. Efeito das mudanças nas águas são os sintomas de envenenamento, sobretudo nos períodos chuvosos, com diarreias e dores de cabeça, especialmente em crianças. As pescarias também são cada vez mais custosas e magras, e os episódios de mortandade em massa de peixes, por causa da contaminação da água, se repetem. 

Obras de infraestrutura, como estradas, ferrovias e rodovias, continuam comprometendo o parque. “As terras indígenas vão cada vez mais se tornando ilhas, com grau de risco de vulnerabilidade maior”, lamenta o indigenista. As Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH) são algumas dessas obras levadas a cabo na região. Atualmente já existem cinco em operação nos rios formadores do Xingu. “As PCHs são uma ameaça aos povos indígenas, pois a pesca é uma fonte de proteína fundamental de subsistência. Com os rios barrados, a ecologia pesqueira muda totalmente. Se continuarem sendo feitas, em breve os índios vão ter várias restrições ao peixe”, alerta. 

Txonto Ikpeng, 25 anos, é um “xinguano legítimo”, como ele próprio diz. Mesmo jovem, observou transformações no ambiente: “As coisas mudaram totalmente. As águas não são mais transparentes, os rios são todos barrentos. Não é mais normal como era antes, é muito mais difícil”. Ainda assim, dá mostras de que a construção do parque rendeu bons frutos: “Cresci na aldeia, estudei na aldeia, me formei na aldeia, falo minha língua, minha cultura ainda é forte”. 

Há pouco tempo na administração da Associação Terra Indígena Xingu (Atix) – organização fundada pelas lideranças do Alto, Médio e baixo Xingu, em 1995, para vigiar e proteger as fronteiras do parque –, o jovem tem clareza: “Temos essa vontade de trabalhar na nossa própria organização para poder ter autonomia, ser protagonistas do nosso pensamento”. 

Para as novas gerações, que não acompanharam pela revista O Cruzeiro (1928-1975, primeira publicação semanal do país a valorizar o recurso da fotografia) a saga dos Villas Bôas, o filme Xingu é uma lembrança de que nem tudo na história do Brasil, no que se refere aos povos indígenas, são massacres e barbárie. Orlando foi o último dos três irmãos a morrer, em 2002. 

Assim como Cláudio (1916-1998), pôde observar muitas das mudanças que previam para a região do Xingu – Leonardo (1918-1961) não viu o parque se estabelecer. “Quando eles morreram, todos os povos xinguanos sentiram e choraram bastante”, conta Pirakumã, que, junto com seu povo, realizou para Orlando o Kuarup – ritual funerário feito em honra dos chefes e grandes aliados. A festa foi uma das maiores que o parque já viu.