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Onde os sinos falam

São João del Rei preserva uma forma de comunicação secular, executada na maior parte das vezes por jovens sineiros, que mantêm viva uma profissão cada vez mais rara

João Correia Filho

Rodrigo Leandro da Silva, de 37 anos, diz que as pessoas estranham sua profissão descrita na carteira de trabalho: sineiro. Mas orgulha-se da atividade, patrimônio cultural do país. Na cidade histórica de São João del Rei (MG), o toque dos sinos é tradição secular e, ainda, um importante meio de comunicação. “Mesmo em época de internet, TV a cabo e toda a tecnologia, o sino é muito eficiente para informar sobre os ritos religiosos e fatos sociais da cidade”, diz Rodrigo, responsável pelas badaladas da Igreja de Nossa Senhora do Rosário.

A “linguagem dos sinos” é capaz de transmitir aos moradores informações precisas como as horas, o horário das missas, que tipo de celebração será realizada e por quem: se por um padre (três badaladas), pelo bispo diocesano (sete) ou arcebispo (nove). É possível saber se alguém nasceu ou alguém morreu, se homem ou mulher. Se houver um incêndio, o sino avisa. “Se ocorre algum problema com o sineiro e o sino não toca, ou toca fora do horário, os fiéis começam a telefonar. Um erro nas badaladas pode causar uma confusão na cidade”, conta Rodrigo, senhor desse “idioma”. Subiu nas torres da Igreja do Rosário ainda criança, inspirado por dois de seus irmãos que já exerciam a profissão. “Sempre fui muito ligado à igreja, mas, confesso, a curiosidade de saber o que se passava lá em cima também me atraiu”, conta. Seis irmãos de Rodrigo são sineiros; apenas um não quis seguir os passos da família.

“Aqui os sinos dobram desde a fundação da cidade, no início do século 18. E, de geração a geração, a tradição chega com força até os dias de hoje”, diz o historiador Aluízio José Viegas, estudioso do tema. A história dos sinos no Ocidente, segundo ele, remonta ao século 6 e chega ao Brasil com a colonização. “Como a religião era oficializada pelo Estado nessa época, os sinos eram usados, além dos ritos católicos, para anunciar datas da Coroa Portuguesa, como nascimentos de príncipes, aclamação de reis e de gente da nobreza. Com a Independência, os toques limitaram-se praticamente aos ritos religiosos”, completa Viegas. Documentos apontam que em algumas épocas as cidades de Minas Gerais chegaram a ser consideradas barulhentas, devido ao grande número de toques disparados a todo momento. “Seriam as primeiras notícias de poluição sonora da História do Brasil”, brinca Viegas.

João Correia FilhoIgreja do Carmo
Ruas de São João del Rei e as torres da Igreja do Carmo

Os jovens da torre

A participação dos jovens é decisiva para a preservação da tradição. Jefferson Alexandre da Silva Paula, de 23 anos, desde os 8 sobe e desce as escadarias da torre da Catedral de Nossa Senhora do Pilar, antes como aprendiz, hoje como sineiro responsável pelas badaladas de um dos mais importantes templos históricos da cidade. Jefferson domina o ofício: “Tocar o badalo com o sino parado se chama repique. Dobre é quando o sino gira sobre o próprio eixo e bate o badalo uma ou duas vezes. Se for uma vez é dobre simples; duas, dobre duplo”. É assim também que descreve períodos de festa religiosa, como a Semana Santa, quando os sinos dobram e repicam muitas vezes ao dia, anunciando cada detalhe da celebração. “A hora da consagração do pão e do vinho, por exemplo, é avisada com uma pancada no sino pequeno e imediatamente uma pancada no sino grande”, detalha. 

Segundo ele, os toques dependem do número de sinos que a igreja possui e de quantos serão tocados ao mesmo tempo. Em alguns casos, tocam-se quatro ao mesmo tempo, embora o número de sinos varie de uma igreja para outra. Apesar da pouca idade, Jefferson já é uma referência para outros garotos da cidade que pensam em seguir a vida de sineiro. 

O orgulho se repete nas palavras de Nilson José dos Santos, 34 anos, da Igreja de São Francisco desde 1992. Ele conta que um dos dias mais emocionantes de sua vida profissional foi quando dobrou os sinos para anunciar a morte do Papa João Paulo II. “Estava em casa e vi pela TV. Saí correndo para vir soar o sino avisando a todos os fiéis. Quando cheguei, ouvi os sinos da Matriz de Pilar anunciar a morte do Santíssimo, seguida por mim, na São Francisco, e por outras igrejas que davam a notícia. Foi muito emocionante, o ar de São João del Rei ficou pesado, triste”, lembra.

Os sineiros são-joanenses ainda têm outro ponto em comum. Todos concordam que um dos toques mais belos ecoados na cidade é o de Nossa Senhora Morta. “É o dobre mais bonito de todos, e um dos mais difíceis. É como uma música, e precisa ser tocado por quatro pessoas, com quatro sinos ou mais”, diz Jefferson.

O dobre de Nossa Senhora Morta só acontece uma vez por ano, no dia 14 de agosto, na missa de Assunção de Nossa Senhora. De tão belo, já serviu de inspiração para compositores importantes da cidade, como o padre Mestre José Maria Xavier e Luiz Batista Lopez, ambos músicos do final do século 19, que utilizaram o ritmo dos sinos como base para suas obras. 

Mais de um século depois, os sons que ecoam por São João del Rei ainda inspiram jovens e crianças. O sineiro Jefferson tem uma leva de seguidores mirins que o auxiliam e tentam aprender o ritmo das badaladas falantes. Nilson ensina o ofício a uma dúzia de jovens da comunidade. Rodrigo ensina sobrinhos e vê no filho, de pouco mais de 1 ano, sinais de que seus conhecimentos serão perpetuados. Desde que começou a balbuciar as primeiras palavras, ouve as badaladas ecoar e repete: “Dão-dão, papai, dão-dão”.