Igreja

Os caminhos de dom Angélico nas ruas de seu país

Bispo emérito já foi bom goleiro e 'aprontava' quando pequeno. Aos 85 anos, continua inquieto na sua missão. 'Tenho que dar o meu testemunho de vida'

Jailton Garcia/RBA

Como bispo emérito (“aposentado”), dom Angélico Sândalo Bernardino vai aonde for chamado. Na casa onde mora, no Jardim Primavera, periferia da zona norte de São Paulo, ele também se movimenta incansavelmente, subindo e descendo, “como se nada estivesse acontecendo”, uma pequena escada em espiral que dá acesso a seu escritório, na parte de cima, ao lado de uma mesa grande, estantes, um pequeno altar. Pouco antes da porta está uma foto de um sorridente dom Paulo Evaristo Arns com a frase “Esperança sempre!” e outra em que dom Angélico, de costas, abraça o papa Francisco, em alegre reencontro depois de muito tempo – ele o conhecia há muitos anos, em vários encontros com o ainda cardeal Bergoglio.

As andanças pela casa, pelas ruas e pelo país animam dom Angélico, que já teve sérios problemas no coração – um infarto há 20 anos –, mas conta estar bem de saúde agora. Com 85 anos, preserva um certo jeito de menino – o religioso confessa que era muito moleque quando criança: “O que é isso? Aprontava muito!” Bem em frente à casa, há um campinho onde tem sempre uma turma jogando bola. Ele também já jogou. “Eu era um gato no gol”, brinca. 

Foram mais de duas décadas de convivência com dom Paulo, ex-cardeal-arcebispo de São Paulo, a quem sempre se refere afetuosamente. “Eu era coordenador da Pastoral em Ribeirão Preto (cidade do interior paulista). Aí que comecei a conhecer esse grande arcebispo”, lembra Dom Angélico, que foi ordenado bispo pelo amigo, em 25 de janeiro de 1975, depois de ser nomeado, no ano anterior, pelo papa Paulo VI. “Trabalhei com dom Paulo e a equipe de bispos por 23 anos”, diz, recordando uma frase recorrente do cardeal que remete ao quadro na entrada de seu escritório: “Vamos avante, de esperança em esperança, sempre”.

Um depoimento sobre a morte do operário Santo Dias da Silva, em outubro de 1979

Devoto de São Jorge

Corintiano, então, como o cardeal? Dom Angélico diz que a região onde nasceu “é tudo Palestra”, palmeirenses. Mas ele passou grande parte da vida na zona leste paulistana. Foram 15 anos na Diocese de São Miguel Paulista. Na salinha de entrada, há um quadro assinado pelo “povo da região de São Miguel” em homenagem ao “homem-palavra”.

“Como eu não seria devoto de São Jorge?”, pergunta, ao mesmo tempo em que esclarece ser hoje um torcedor desencantado, pela forma com que o futebol passou a ser gerido. “Hoje o que manda nos clubes é o dinheiro. Não é mais a camisa”, lamenta.

Além disso, a violência entre torcedores o entristece. “Aqui na Inajar (a Avenida Inajar de Souza, próxima de sua residência) houve um conflito entre torcidas do Palmeiras e do Corinthians, com um rapaz morto”, recorda. Ele também não se entusiasma com a Copa do Mundo, prestes a começar. “Gostaria que o Brasil ganhasse para o povo também ficar alegre. No dia seguinte a luta continua.”

angelico-2.jpg1964 não foi golpe militar. Foi  civil, financiado pelo poder econômico, apadrinhado pelos EUA. Um poder que permanece. Por que a Fiesp comemorou o impeachment da Dilma?

Para dom Angélico, o poder econômico está no centro das mazelas sociais. “O sistema em que estamos imersos é iníquo. Acúmulo (para poucos) em detrimento de milhões”, diz, defendendo uma economia solidária. “Os bens que o Pai deixou são para toda a humanidade. A acumulação não faz sentido. Hoje, temos escravidão de outras formas. Temos representantes financiados por quem? Pelo capital.” 

O capital estava por trás do golpe de 1964, afirma. “Não foi golpe militar. Foi golpe civil, financiado pelo poder econômico, apadrinhado pelos Estados Unidos.” Um poder que permanece, constata: “Por que a Fiesp comemorou o impeachment da Dilma?” Ele aponta para uma foto e diz que até 31 de dezembro ela é a legítima presidenta do Brasil. “O outro (referindo-se a Michel Temer) é golpista.”

Faz menção a uma notícia do começo do ano, quando Temer provou que estava vivo e voltou a receber sua aposentadoria. “Sabe quanto ele recebe? 22 mil. Começa por eles”, diz, indignado, referindo-se à reforma da Previdência. “Eu detesto hipocrisia.” Ao comentar o noticiário internacional, afirma que Coreia e Irã têm, sim, de se desarmar, mas questiona a autoridade moral de Estados Unidos e Rússia para essa cobrança, se esses países “têm arsenais para exterminar 20 vezes a humanidade”.

“Quero ser padre”

Dom Angélico nasceu em 19 de janeiro de 1933, em Saltinho, “a capital do universo”, segundo ele. Na época, era um distrito do município de Piracicaba, a 180 quilômetros da capital paulista. Foi o quinto de nove filhos. O pai, Duílio Bernardino, trabalhava na roça. “Nunca teve terra”, lembra, falando com carinho dele e de sua mãe, Catarina Sândalo. Um dia, um padre perguntou para um grupo de meninos: “Quem quer ser padre?”. Com 11 anos, Angélico quis.

Mas também foi jornalista. Exibe com alegria suas carteirinhas do sindicato da categoria. No Diário de Notícias, de Ribeirão Preto, também no interior paulista, nos tempos do linotipo e da máquina de escrever, fez de tudo na redação, até ser diretor. Já eram tempos de golpe. “Quantas vezes eu tive de vir (a São Paulo) prestar esclarecimentos…”, lembra.

As opiniões de dom Angélico o levaram, várias vezes, a ser atacado verbalmente: “comunista”, “vermelho”, “bispinho” são alguns exemplos. “É porque desconhecem o Evangelho. Evangelho significa partilha. Cada pessoa é sagrada”, diz. “Os templos não são os edifícios de pedra, são as pessoas. Não adianta falar que se ama se se convive com as desigualdades. Há um perigo de fechar os olhos para a realidade e refugiar-se em templos. Não tem nada de comunismo, mas de cristianismo.”

Ainda como bispo da Diocese de São Miguel, ele ameaçou deitar-se em trilhos. “Na passagem do trem não tinha cancela. O trem pegava”, conta, recordando um acidente com um ônibus que resultou em várias mortes. Em uma reunião com moradores, uma senhora sugeriu: por que não paralisar os trens? Antes que a manifestação acontecesse, as autoridades chamaram para conversar. “O superintendente da estação ferroviária me convocou. Macaco velho, fui com mais três pessoas.” Pediram um tempo para que as melhorias fossem feitas, o que realmente aconteceu. “Antes do prazo lá estavam as cancelas.”

Dom Angélico

O impeachment foi 50% do golpe. A outra metade consiste em evitar a candidatura de Lula. No fundo, no fundo, o que quer o poder econômico? Afastar o poder popular

Lula e o golpe

Os ataques aumentaram quando ele celebrou ato por Marisa Letícia, quando ela morreu, no ano passado. “Não houve instrumentalização nenhuma”, afirma, referindo-se a um termo repetido na ocasião. “Houve um ato ecumênico. Encerrado o ato, nós nos retiramos.”

Dom Angélico é amigo da família de Lula. Batizou João, filho de Lurian, filha do ex-presidente, e administrou o sacramento dos enfermos em Marisa. Em 7 de abril, dia em que Lula se apresentaria à Polícia Federal, dom Angélico estava em São Bernardo para novo ato ecumênico – e para ser novamente criticado, até por parte do cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, o que rendeu uma resposta do jornalista Roldão Arruda

Da mesma forma que no ano anterior, o religioso desceu do caminhão de som assim que encerrou o ato e seguiu lentamente pela rua, amparado pela irmã Carmem Julieta, uma espécie de guardiã.

Na casa modesta em que mora, há um pequeno teclado na sala. Partitura aberta em Ave Maria, de Gounod. Quem toca é ela (Carmem), diz dom Angélico, depois de oferecer biscoitos de sua própria produção.

Para ele, o impeachment foi “50% do golpe”. A outra metade consiste justamente em evitar a candidatura de Lula. Dom Angélico retoma o tema: “No fundo, no fundo, o que quer o poder econômico? Afastar o poder popular”. E defende o ex-presidente: “Gostaria que esse pessoal que fala em triplex fosse até o apartamento dele em São Bernardo do Campo. É muito simples”. Mas considera improvável que Lula possa disputar a eleição em outubro.

Ao mesmo tempo, diz não ser ingênuo, fazendo sua crítica ao mundo político. “Na história dos partidos, o dinheiro entrou, e entrou valentemente.” As críticas se dirigem também ao comportamento da Justiça, especificamente de Sérgio Moro e alguns de seus encontros em outras terras. “Não fica bem que o Moro tenha desfilando nos Estados Unidos. Parece um adolescente. Tem uma Justiça comprometida partidariamente.”

Paulo Pinto/AGPT
Com Lula em São Bernardo do Campo, em 7 de abril, dia que em que o ex-presidente decidiu cumprir a ordem de prisão

Testemunho de vida

Organizado, ele arquiva textos, artigos, reportagens, em pastas. Tem muitas fotografias espalhadas pela sala: com o bispo sul-africano Desmond Tutu, com o Dalai Lama, Paulo Freire, Leonardo Boff, dom Hélder Câmara, o deputado Paulo Teixeira (“Meu filho”), ele mesmo na favela de Vila Carvalho (em Ribeirão Preto), onde morou, imagens de ocupações, movimentos sociais. “Aqui é tudo foto de luta, viu, meu irmão?”, comenta. “Esse povo é maravilhoso.” Sua maior honra, diz, é ser discípulo de Cristo. “Tenho muito o que melhorar. Agora, tenho que dar meu testemunho de vida.” 

Em sua mesa, um texto recente do papa Francisco e a Constituição brasileira, “que é rasgada, é pisada”. Dom Angélico gosta de ler, principalmente textos religiosos, mas agora é obrigado a reduzir o ritmo, por causa de uma perda de acuidade na vista esquerda. Tapa o olho direito para explicar que, do interlocutor bem à sua frente, só vê um vulto.

Além dos 15 anos em São Miguel, passou 10 na Brasilândia, na zona norte. Foi o bispo responsável pela Pastoral Operária da Arquidiocese, diretor do jornal O São Paulo, responsável regional pela Cáritas, presidente regional da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Em 2000, nomeado por João Paulo II, tornou-se o primeiro bispo diocesano de Blumenau (SC). Como mandam as regras, aos 75 anos apresentou sua renúncia, aceita em 18 de fevereiro de 2009 pelo Papa Bento XVI.

Dom Angélico celebrou missa por Alexandre Vannucchi Leme, morto em 1973 pela ditadura. Conheceu a família do rapaz, em Sorocaba, no interior, e chegou a sugerir que pelo menos um trecho da rodovia Castelo Branco (primeiro presidente militar do período ditatorial), ligando São Paulo a Sorocaba, recebesse o nome do estudante. Estava ao lado de dom Paulo quando o jornalista Vladimir Herzog foi morto, em 1975. 

Entre as dores do período da ditadura, o bispo emérito lembra de uma em particular. “O que me marcou mais foi a morte do Santo”, diz. Santo Dias da Silva era operário e militante da oposição metalúrgica em São Paulo. Alvejado por um tiro, foi assassinado por um policial durante piquete na fábrica da Sylvania, em Santo Amaro, zona sul da cidade, em 30 de outubro de 1979. “Era da minha equipe da Pastoral Operária.”

Ele se emociona ao recordar. “No IML, dom Paulo foi abrindo caminho (entre os policiais), e eu atrás dele. Eu coloquei a mão no peito do corpo frio de Santo Dias.” O cardeal-arcebispo pôs um dedo no local do tiro e rezou o Pai-Nosso.

Dom Angélico desce mais uma vez a escadaria em caracol. Conta que no dia seguinte teria de ir a Ribeirão Preto para cerimônia em uma creche, como faz uma vez por ano, mas que dificilmente conseguiria viajar devido ao caos nas estradas em razão da paralisação dos caminhoneiros. Mas não deixará de caminhar. “Gosto de estar misturado com o povo.”

Acervo pessoalFamiliares
Angélico (de óculos) com familiares (da esquerda para a direita): Lilian, Ernesta, Maria, Duílio, Antonio, Catarina, Inês e Irene (está ausente a irmã Cecília)
Acervo pessoalCom Dalai Lama
Com o Dalai Lama
Acervo pessoalCom Boff
Com o amigo Leornardo Boff
Acervo pessoalCom Paulo Freire
Com Paulo Freire