Comissão da Verdade de São Paulo ouve depoimentos de vítimas do Araguaia

É a segunda vez que a comissão ouve relatos de pessoas que participaram da guerrilha, a primeira foi em março com audiência com mulheres que atuaram no movimento do PCdoB

Dos cerca de 60 mortos, somente dois foram identificados e as famílias ainda lutam na Justiça para tentar encontrar os corpos não identificados (Foto:divulgação)

São Paulo – Quarenta e um anos depois do início das operações das Forças Armadas na região do Araguaia, iniciadas em 11 de abril de 1972, a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” fez hoje (12) uma audiência com sete pessoas ligadas ao movimento do PCdoB, que pretendia fazer do Araguaia uma base para operações de guerrilha rural, mas foi massacrado pelos militares antes de começar a atuar. 

As operações das Forças Armadas, que ficaram conhecidas como Guerrilha do Araguaia, deixaram mais de 60 desaparecidos e apenas dois mortos identificados, Maria Lúcia Petit e João Carlos Haas Sobrinho. 

Das sete testemunhas que participaram da audiência de hoje na Assembleia Legislativa, apenas Crimeia Schmidt participou como guerrilheira no Araguaia. Os outros seis são parentes de mortos e desaparecidos – Maristela Nurchis, irmã de Manoel José Nurchis; Laura Petit, irmã de Maria Lúcia, Jaime e Lúcio Petit, os irmãos Petit; Dalmo Ribas, irmão de Antônio Guilherme Ribeiro Ribas; Igor Grabois, filho de Gilberto Olímpio Maria; Rosana Momente, filha de Orlando Momente; e Liniane Brum, sobrinha de Cilon da Cunha Brum. 

Laura Petit afirmou que o Estado brasileiro precisa fazer justiça aos resultados das comissões da verdade instauradas no país e idenficar os responsáveis por crimes cometidos por agentes da repressão durante a ditadura (1964-1985). “Eu espero que o nosso país possa fazer justiça, nomear os culpados e adotar punições. A transição democrática ainda não se fez”, disse. Ela deu um dos depoimentos mais emocionantes da audiência ao falar sobre a despedida entre seu irmão mais velho, Lúcio, e o caçula da família, Clovis, então um adolescente. 

“O Lúcio falou para o Clovis que depois voltava para buscá-lo, mas que ele precisava ficar para cuidar de nossa mãe, e quando ela morreu, o Clovis disse que não sabia se tinha cuidado dela como o Lúcio queria”, disse. 

Dos cinco irmãos, apenas Laura e Clovis estão vivos, e dos três que foram mortos no Araguaia, apenas Maria Lúcia teve os restos mortais identificados e enterrados pela família em um cemitério em Bauru (SP). 

Para Maristela Nurchis, a participação e morte do irmão na Guerrilha do Araguaia desmantelou a família. “A nossa família era minha mãe, meu pai, eu e meu irmão” disse. Segundo ela, após o golpe militar em 1964, quando o irmão passou a viver na clandestinidade, a polícia invadiu sua casa em busca de material comprometedor e a família passou a viver um calvário. 

“De vez em quando aparecia alguém do partido com uma carta dele, mas isto, uma vez por ano, a cada dois anos, e minha mãe vivia de consumir estas cartinhas. Ela procurava notícias em todos os jornais e uma vez, numa notícia bem pequena, ela soube que ele havia morrido. Meu pai sofreu um infarto e morreu. Minha mãe ficou doente, muito doente, teve que fazer hemodiálise. Nós perdemos nossa casa, tivemos de ir morar de favor em casa de parentes, eu tive que começar a trabalhar, e depois que minha mãe morreu, a minha família ficou sendo só eu”, disse.

Rosana Momente, que perdeu o pai ainda criança, também fez um relato sobre os estragos causados pela perseguição que o paí sofreu da ditadura sobre sua família. “Minha mãe teve que ir trabalhar em casa de família e ela não podia ficar comigo. Eu fui para uma creche de freiras, e acabei sendo criada longe da minha família, só fiquei sabendo a verdade sobre meu pai quando uma prima me contou, quando eu tinha 15 anos e ele já havia morrido”, afirma.

Segundo Rosana, o pai foi visitá-la uma vez na creche, mas como não estava acompanhado da mãe, as freiras não o deixaram entrar para vê-la porque não o conheciam. “Em 1985 eu vi o nome do meu pai em um documento da Ordem dos advogados do Brasil sobre os desaparecidos políticos e aí entrei em contato com eles e me indicaram outras pessoas que também tinham perdido seus familiares. Aí que eu fui saber melhor a história do meu pai. Eu admiro muito ele porque o que ele fez, fez pensando no bem do país”, afirma. 

Até hoje a família ainda sofre por conta do desaparecimento do pai. “Minha mãe não consegue receber pensão dele, que teve um período de contribuição trabalhista, porque até hoje não há uma data exata da morte e, sem isto documentado, nós não conseguimos o benefício no INSS”, afirma. 

Dor do silêncio

A única vez que teve contato com o tio e padrinho Cilon da Cunha Brum, Liniane tinha apenas dez dias de vida, foi em 1972. “Foi a última vez que meus avós, pais dele, o viram. Foi quando ele foi a Porto Alegre para me batizar”, disse. Liniane afirma que toda a família foi abalada pelo desaparecimento trágico do tio. “A dor do silêncio de não se poder falar do Cilon na família e a dor da minha avó, que morreu em 1989 sem saber nada sobre como ele morreu e o que aconteceu com o corpo, fez com que eu fosse até o Araguaia para saber sobre meu tio ”, disse. 

Liniane afirma que foi três vezes à região e conseguiu testemunhos de pessoas que relataram sobre os últimos dias de Cilon. “Eu pude encontrar pessoas que me falaram como ele morreu e eu torço para que o país esclareça o que ocorreu lá, para que não aconteça o que aconteceu com a minha avó, que morreu sem saber de nada”, afirma.

Igor Grabois, que já foi candidato ao governo de São Pualo pelo PCdoB, fez um relato sobre a atuação política de seus pais e sobre a vida na clandestinidade até 1979, mas também relatou a última vez que viu o pai, em 1971, em um apartamento que morava no bairro do paraíso. 

Dalmo Ribas, fez um relato emocionado sobre o irmão Guilherme e relembrou que no ano de sua morte na Guerrilha do Araguaia, 1974, o tema da Campanha da Fraternidade era “Onde Está o Teu Irmão?”, que tratava “luta contra o egoísmo, contra o orgulho e o desamor, nosso esforço para perceber o irmão”. “Eu via os cartazes espalhados pela cidade e aquilo era como um soco”, afirma. 

Crimeia Schmidt foi a primeira a falar na audiência e relatou a situação que os guerrilheiros do PCdoB encontraram quando chegaram à região do Araguaia. Segundo ela, a decisão de ir para lá foi tomada na 6ª Conferência do partido em 1966 e o objetivo não era fazer a guerrilha lá, mas sim usar a região com um refúgio e fazer atuações em locais próximos. 

Viagem ao passado

“A escolha foi porque a região tinha um histórico de enfrentamento por parte da população, enfrentamento contra madeireiras e contra mineradoras. A maioria das pessoas tinha migrado de regiões do Nordeste porque haviam perdido suas terras lá”, afirma. Crimeia disse que foi para o Araguaia em 1969 e foi a terceira pessoa do seu destacamento a chegar lá. 

“Lá não tinha nada, nem dinheiro, tudo funcionava na base do escambo, as pessoas trocavam produtos por produtos. Nenhuma emissora de rádio brasileira chegava lá, ainda não tinha a Embratel, e nós sintonizávamos rádios de outros países que faziam transmissões em português” afirma. 

“A gente estava fazendo uma viagem ao passado, mas a gente conhecia o futuro, as pessoas de lá não conheciam nada, geladeira, carro, luz, nada, nem motor a diesel”, afirma.

Durante as operações das Forças Armadas que debelaram com a guerrilha antes que ela tivesse atuação, Crimeia foi “sequestrada”, e transferida para São Paulo, já que, na época, a estratégia dos militares foi manter total sigilo sobre as operações no Araguaia a ponto de não haver registro de prisões. 

Entre 1972 e 1974, as Forças Armadas, em operações com contingentes que variavam de 5 mil a 15 mil soldados para combater cerca de 60 guerrilheiros, dizimaram os ex-estudantes e trabalhadores do PCdoB e também moradores da região. Em 1975, depois do extermínio dos guerrilheiros, as Forças Armadas deram início ao que ficou conhecido como Operação Limpeza e se caracterizou pelo sumiço de todas as evidências da luta, com ocultação de cadáveres e queima de documentos. 

Em 14 de dezembro de 2010 o Brasil foi condenado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) por violação aos direitos humanos por causa das atrocidades cometidas no Araguaia. Na condenação, a OEA sentencia que, apesar da Lei da Anistia de 1979, que anistiou os militares responsáveis pelas violações, o país deve investigar e punir os crimes cometidos no período da ditadura.

O presidente da comissão, o deputado estadual Adriano Diogo (PT), disse que esta é a segunda vez que são colhidos depoimentos de pessoas ligadas à Guerrilha do Araguaia e na próxima vez serão ouvidas as “crianças do Araguaia”, filhos de guerrilheiros que eram crianças na época. Segundo ele, todos os depoimentos serão encaminhados à Comissão da Verdade do governo federal.

 

Leia também

Últimas notícias