Ministério Público recorre contra extinção de ação por trabalho escravo na cana no Pará

Juiz federal responsável pela sentença desconsiderou relatório do Ministério do Trabalho que mostrava jornada exaustiva, falta de condições de higiene e maus tratos a funcionários

São Paulo – O Ministério Público Federal no Pará ingressou com recurso contra a extinção de ação por trabalho escravo contra os proprietários da fazenda Pagrisa, no município de Paragominas, próximo à divisa com o Maranhão. 

A procuradora Maria Clara Barros Noleto pede que a Justiça Federal reconsidere a decisão, que livra de processo Murilo, Marcos e Fernão Villela Zalcaner, donos da área na qual foi flagrada, em 2007, a existência de um grupo de 1.064 trabalhadores em condições análogas à escravidão. A eles faltavam água e condições básicas de higiene, não havendo o fornecimento nem mesmo de papel higiênico. Além disso, os cortadores de cana eram submetidos a jornadas que se iniciavam às 4h30 da madrugada e não se encerravam antes do final da tarde, sempre com exigência de que fosse feito um corte específico da cana que, na visão do Ministério Público, aumentava o risco de acidentes de trabalho.

Em dezembro do ano passado, ao avaliar o caso, o juiz José Valterson de Lima decidiu pela extinção da causa por não encontrar provas nos autos. Ele desconsiderou o relatório elaborado pelo Grupo de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho, que flagrou a situação, sob o argumento de que se tratam de provas acumuladas antes do processo. Na visão do magistrado, todas as provas precisariam, na fase de instrução processual, ser submetidas a material contraditório para aferir a veracidade das mesmas.

A procuradora discorda, argumentando que não há como colher novamente evidências de uma situação que foi desfeita quando da operação. “Tendo em vista que o relatório do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho foi elaborado por profissionais especializados, obedeceu todas as normas legais e pela impossibilidade de realização de nova perícia em razão do transcurso de tempo, deve ser reformada a sentença do juízo a quo para que o referido relatório seja aceito como prova nos autos”, argumenta.

O juiz, porém, preferiu basear-se em inspeção da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura no Pará realizada após o flagrante do órgão federal, o que, para ele, não constitui um impedimento para que a nova situação, bem menos grave que a anterior, seja considerada como prova de que não houve trabalho escravo na Pagrisa. 

Em sua sentença, Lima cita basicamente os depoimentos que foram favoráveis aos fazendeiros, deixando de lado as oitivas que mostraram uma situação degradante para os trabalhadores, como o da vítima Francis Vanicola: “Eles tratavam a gente igual a porco (…) A água [para beber] era quente, a refeição era feita à beira do canavial, no sol quente. Havia bicho na comida, tapuro [verme], toda estragada (…) Se parasse para sentar no chão, não podia. Descansar um pouquinho, não podia. Teve um cabra que se encostou na vassoura e um encarregado chegou e mandou embora”.

Segundo relatos dos próprios fiscais de trabalhadores, a comida servida era azeda e todos os produtos utilizados pelos funcionários eram descontados do salário, o que se constitui em uma relação de servidão. “Agiam quase como senhores feudais, tratando o ser humano das formas mais aviltantes possíveis, como se fossem meras mercadorias desprovidas de cunho humano, utilizando-os a seu bel-prazer”, diz o Ministério Público Federal.

Entre 1995 e 2010, o Ministério do Trabalho libertou 31.500 trabalhadores em situação análoga à escravidão. Os processos que chegam à fase de julgamento resultam, no geral, em absolvição ou em penas que são convertidas em pagamento de multa e prestação de serviço comunitário. A Proposta de Emenda à Constituição 438, de 2001, que destina imediatamente à reforma agrária as fazendas nas quais haja flagrante de trabalho escravo, está parada há oito anos na fila de votação da Câmara.