Abusos no Fast Food

Ex-trabalhadores do McDonald´s denunciam assédio sexual, moral e racismo

Lista de denúncias à Comissão de Direitos Humanos do Senado inclui ainda LGBTfobia, exploração, humilhação e maus tratos, com comida vencida no cardápio do trabalhador. Pesquisadores relatam escalada do contrato intermitente, em uma precarização sem fim

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Audiência pública do Senado ouve depoimento de ex-trabalhadores de lanchonetes do McDonald´s

São Paulo – A julgar pelo depoimento de ex-trabalhadores de lanchonetes da rede McDonald´s, o cotidiano em unidades dessa gigante mundial do fast food inclui assédio sexual, moral, racismo, todo tipo de discriminação, pressão, maus-tratos e até alimentos vencidos. Uma lista que não para por aí quando as relações dessa força de trabalho são analisadas por pesquisadores. Nesse caso, os trabalhadores dessa imensa cadeia estão ainda entre as principais vítimas de uma das piores mazelas da chamada “reforma” trabalhista de 2017: o trabalho intermitente, que dependendo do ponto de vista, pode até ser comparado ao trabalho análogo ao escravo, pela falta de direitos.

Em audiência pública realizada ontem (8) pela Comissão de Direitos Humanos do Senado, ex-trabalhadores relataram em detalhes parte de suas experiências a senadores, juízes e sindicalistas. E revelaram o sofrimento humano por trás dos sanduíches industrializados intensificado em tempos de pandemia de covid-19.

Representantes do McDonald’s foram convidados, mas não compareceram. Apenas enviaram uma carta à comissão, lida pelo senador Paulo Paim, em que declaram seguir “rígido código de conduta”. Segundo a mensagem, toda reclamação de funcionários é anônima e “devidamente registrada” e, quando as denúncias são comprovadas ao fim dos processos, medidas punitivas são aplicadas. A empresa disse ainda que a entidade jurídica representativa do setor de fast-food seria a plataforma mais adequada para o tratamento do tema.

Atos nojentos

Ex-trabalhador de uma loja do McDonald´s em Curitiba, Gabriel Felix Milbrat contou que sofreu assédio sexual, moral e racismo quando o sonho ao ingressar na empresa era o de seguir carreira e “mostrar que a cor da pele não significa nada”. Mas na primeira semana já foi barrado. “Recebi apelido de picolé de piche, disseram que eu era mais um ‘veadinho’ no grupo e sempre que reportava pra gerente, ela dizia pra eu não ligar, que era brincadeira. Mas pesa pra gente (da comunidade LGBTQIA+), e que é negro. Não somos colocados no balcão, pra vender lanche. A gente vai limpar chão, limpar banheiro, gordura. Vai pro quiosque ficar horas sem poder ir ao banheiro”, disse.

No entanto, o que o fez deixar o restaurante foi algo pior. “O ato nojento do meu superior, foi ele gozar em cima de mim enquanto eu dormia em meu break. Ele ejaculou em cima de mim! Eu desci chorando, procurei minha gerente, que olhou pra mim e disse: ‘vai Gabriel, não precisa de drama. Vai lavar isso e depois a gente conversa’.

Esses atos continuaram, ele passava a mão em mim, mandava vídeos se masturbando, falando meu nome. Me procurou em todas as minhas redes sociais, que eu bloqueava”, disse o ex-trabalhador, afirmando que chegou a ter o celular invadido pelo então superior, que apagou parte das provas.

As que permaneceram Gabriel encaminhou à campanha Sem Direitos não é Legal. “Foi a única mão que se estendeu. Se eu tivesse na época um sindicato que estivesse comigo, talvez eu nao tivesse passado por isso. Ninguém sabe lá dentro o que é um sindicato”, disse ainda.

Assédio, discriminação e adoecimento

A ex-trabalhadora Hildayane Saraiva Aragão é outra cujo sonho se transformou em pesadelo marcado por assédio, discriminação e adoecimento. Trabalhou em uma loja do McDonald´s do Aeroporto de Brasilia e do Eixo Monumental no período de 2017 a 2019. Sonhava em se tornar anfitriã do restaurante e se esforçava ao máximo nesse sentido. Por isso nao registrava ponto de saída em fins de semana, ficando horas e horas a mais, em busca do cargo sonhado e prometido.

Até que a troca de gestores pôs fim a tudo e os planos mudaram. “Disseram que eu era gorda demais, que a anfitriã tem de ser o cartão postal, que eu não era capaz. Haviam solicitado uniforme pro meu tamanho, mas mandaram ajustar pra outra pessoa mais magra. Ali onde eu havia assumido o salão pra fazer pesquisas e a área do caixa, eu fiquei para trocar as 21 lixeiras. Desenvolvi protusão discal lombar por passar muito tempo trocando as lixeiras todos os dias seguidos, por limpar o chao. E diziam também que não era bonita o suficiente para estar ali no balcão, e que eu parecia uma moradora de rodoviária de tão feia que eu estava.”

O resultado do tratamento recebido pelos gestores, segundo Hildayane, foi um quadro de ansiedade e depressão. “Tive varias crise de ansiedade na loja, onde por vezes achei que ia morrer, o que levou a internação por seis meses em em clínica psiquíatrica, longe de tudo e de todos. Desenvolvi também pedras no rins, porque lá os funcionários não podem beber água. Ainda que levem sua garrafinha, não têm o direito de encher”, disse, emociada, assim como os demais ex-trabalhadores.

Conforme ela, chegou o momento que pediu demissão apesar de a mãe estar desempregada. Mas não fazia sentido trabalhar para pagar medicamentos. “Hoje tenho nova vida, sanidade mental, física, psicológica, para trabalhar em dois empregos”, disse Hildayane, que além da Câmara de Luisiania, trabalha como auxiliar de farmácia em um hospital. “Não fui anfitriã, mas cuido de vidas, de pessoas que chegam ali e que atentaram contra suas próprias vidas e hoje percebo que quando você tem condições para trabalhar, você consegue ir bem além.”

Calúnias

Os maus tratos, que permearam a fala dos ex-trabalhadores ouvidos, foram denunciados pelo ex-trabalhador Jean Henrique de Souza Simão, de uma lanchonete da rede em Votuporanga, no interior paulista. Vítima de uma campanha de difamação de um gerente, que segundo ele espalhou boatos de que era usuário de drogas, enfrentou ainda a gestão truculenta. E prática de patrões de alimetarem seus funcionários com produtos que deveriam ser descartados.

Em um dos episódios relatados por Jean, um gerente, descontrolado, deu um forte golpe em uma das chapas após reclamação de um cliente sobre o ponto da carne. Era um dia 31 de dezembro, dia de grande movimento na loja. E a reação assustou os trabalhadores na cozinha e também quem estava do outro lado. “Havia um problema no Tefon, que eu já havia comunicado e não havia sido dada atenção. Fiquei muito chateado com isso”, disse.

Alimentos vencidos para os trabalhadores

Jean relatou também que a alimentação para os trabalhadores daquela unidade era precária. “A gente tinha de consumir alimentos vencidos, que eles nao descartavam. Colocavam pra gente consumir: pão, cebola, alface, tomate. Comi até sorvete vencido. A gente tinha direito a pegar um lanche pequeno, uma bebida e a casquinha. E a casquinha, muitas das vezes, quando vinha quebrada do fabricante, em vez de descartar, eles davam pra gente. A gente consumia aquilo ali ou ficava com fome. Não davam vale alimentação. Descaso total, faziam pressão psicológica. Quando você estava na área e nao conseguia suprir, eles tiravam, diziam que você não era apto e ficava transtornado. Por causa desse aglomerado de coisas, ficou impossível minha permanência naquele local de trabalho.”

O colega Weliton Carlos Moraes da Silva contou ter sido vítima de racismo, com insinuações de que teria sido responsável pelo desaparecimento de caneta da gerente. “Ouvi ela falar em voz alta que sumiu a caneta dela. Logo em seguida, um colega de trabalho pegou ela mexendo nos meus pertences e veio me contar. A gente não pode abandonar o trabalho”, disse.

O ex-trabalhador voltou a ser vítima de discriminação outras vezes, segundo contou aos senadores. Em outra ocasião, ainda sem experiência, deixou cair gordura no chão quando foi limpar uma fritadeira. Quando disse que ia pegar o esfregão, o gerente o impediu. “Você não vai pegar o esgregão, vai pegar esse dois panos, vai se ajoelhar e vai limpar. Aqueles panos são finos, não têm condições nenhuma de resolver aquele problema ali. Parece que o que ele queria não era ver resolver o problema, mas me ver ajoelhado ali. Enfim, a forma como o McDonald´s trabalha, no final do dia, no final da noite, a gente não fica cansado do trabalho em si. Mas da pressao que eles fazem, diminuindo a gente. A gente suspira, pensa, mas não pode abandonar o serviço, tem responsabilidade”, disse.

Canais abertos

Segundo a diretora do Sindicato dos Comerciários de São Paulo Graça Reis, a experiência durante as visitas às lojas no âmbito da campanha Sem Direitos não é Legal foi marcada por hostilização. E mais: que tiveram de montar kits com máscara e álcool em gel para distribuir entre os trabalhadores, já que as lojas não estavam fornecendo. As equipes, segundo ela e relatos de ex-trabalhadores, estavam usando pano perfex grampeado e amarrado com elástico. Por isso ela pediu aos senadores ações em prol da defesa desses trabalhadores. “Precisamos ter maior atenção para com eles. São pessoas que são arrimo de família, negros, da comunidade LGBT, pessoas sem representação de sindicato, que não recebem hora extra, que não têm condições de negociar direitos com patrões”, pediu a dirigente.

Esses e outros casos de assédio sexual, moral, racismo, discriminação e maus tratos foram denunciados por meio de um canal aberto em uma cartilha da campanha. Já são 250 denúncias reunidas. Segundo o assessor sindical Rafael Messias Guerra, coordenador da campanha, não foi fácil abordar esses trabalhadores. “Geralmente jovens, em seu primeiro emprego, precisando complementar a renda familiar. Outros, arrimo de família. Mas felizmente vários sindicatos abraçaram a causa no Brasil, fizemos uma cartilha e o resultado está sendo bom”, disse.

A audiência foi iniciativa do senador Humberto Costa (PT-PE), com o objetivo de discutir a Sugestão 12/2018, que propõe um Estatuto do Trabalho. O texto é fruto da Subcomissão do Estatuto do Trabalho, que atuou no âmbito da Comissão de Direitos Humanos entre agosto de 2017 e novembro de 2018. O relator, senador Paulo Paim (PT-RS), considerou “verdadeiros, fortes e contundentes” os depoimentos dos ex-funcionários e que a atuação da comissão, com instrumentos como a audiência pública, é fundamental para erradicar todo e qualquer caso de violência, assédio ou discriminação.

E adiantou que encaminhará as denúncias colhidas na audiência ao Ministério Público do Trabalho, à Defensoria Pública e aos órgãos de fiscalização do trabalho. Além disso, deverá ainda inserir no projeto um capítulo especial sobre o assunto. 

Quase escravidão

“Todos os anos recebemos denúncias de trabalhos em condições de escravatura no Brasil e esses números são alarmantes. Também é forte a discriminação da mulher, inclusive por questões de aparência, e o registro de casos de racismo. São absurdos que não podemos mais aceitar. Vamos encaminhar essas denúncias às autoridades competentes, cobrar respostas, e usar essas informações na construção do nosso relatório”, afirmou 

A senadora Zenaide Maia (Pros-RN) disse que o trabalho intermitente é uma forma de escravidão, pois essa forma de emprego sequer dá garantia de recebimento do salário ao fim do mês. Ela se referiu à apresentação do sociólogo do trabalho Ricardo Colturato Festi, da Universidade de Brasília (UnB), que apresentou estudos sobre a jornada de trabalho intermitente utilizada pelas redes de fast-food.

O total de trabalhadores intermitentes na categoria de atendente de lanchonete, em novembro de 2019, foi de 2.937 contratos. Desses, 1.906 não receberam um salário mínimo. “Isso significa que são contratos de gaveta. Ou seja, a modalidade de contrato de trabalho intermitente tem sido utilizada para ter uma força de trabalho disponível que não necessariamente vai ser utilizada, que não tem sido remunerada”, disse Festi.

MacDonald’s global

Em participação na audiência, a advogada Mary Joyce Carlson, do Sindicato Internacional de Empregados de Serviço (Seiu) dos Estados Unidos, disse que muitos trabalhadores deixam de se manifestar por serem jovens. E que a União Europeia fará uma reunião global sobre o tema em 7 de setembro, com a participação de representantes brasileiros. Na ocasião, também serão apresentados relatos de testemunhas sobre casos de violência por questões de gênero sofridos por funcionários de redes de fast-food

Ela defendeu a busca de apoio da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pressão sobre as empresas brasileiras para cumprir as leis de trabalho. E observou também que, de acordo com as diretrizes da OCDE, todos os trabalhadores têm direito a um ambiente de trabalho salutar e seguro. 

“Muitos desses jovens estão tendo o primeiro emprego e precisam trabalhar porque muitos garantem os sustentos de suas famílias. Precisamos atuar conjuntamente com governos e conclamar empresas a assegurar que esses jovens possam aprender em um ambiente seguro e saudável”, afirmou.

Confira a íntegra da audiência pública


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