"Sindicatear"

Avaliação do governo é positiva, mas temos que continuar pressionando, afirma presidenta do Sindicato dos Bancários

Terceira mulher a comandar a entidade em São Paulo, Neiva Ribeiro ressalta que atual governo está aberto ao diálogo, mas políticas precisam ser conquistadas. Ela também avalia avanços da participação feminina no movimento sindical e na política

Sind. Bancários SP/Montagem RBA
Sind. Bancários SP/Montagem RBA
Com Ivone Silva (alto à esquerda) e Juvandia (2ª a partir da esquerda, na nova direção do sindicato): lugar da mulher é onde ela quiser

São Paulo – Eleita em abril para presidir o Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região nos próximos quatro anos, Neiva Ribeiro é a terceira mulher a comandar a entidade. Antes dela, vieram Juvandia Moreira e Ivone Silva, reforçando um processo de crescimento da presença feminina entre os bancários. Em termos históricos, ainda é um processo incipiente, embora contínuo: Neiva é a terceira presidenta em 100 anos. Dos atuais 88 diretores, quase metade (48%) é mulher.

Bancária do Bradesco, Neiva, que completará 52 anos em setembro, iniciou sua carreira em 1989, no Mercantil de São Paulo. Já no primeiro ano se sindicalizou, mas só se tornou diretora em 2000. Estava na Secretaria Geral desde 2017. Período conturbado, que incluiu “reforma” trabalhista, pandemia e eleição de um governo de extrema direita.

Lei inspirada em acordo coletivo

O momento é bem diferente. Embora formado por diversas forças políticas e partidárias, o atual governo, ao contrário do anterior, recebe os movimentos sociais e discute pautas. A sanção do projeto de igualdade salarial, no início do mês, é um bom exemplo disso.

Neiva observa que a lei recém-aprovada (4.611) teve inspiração na convenção coletiva nacional dos bancários. Uma das cláusulas, incluída há 23 anos, obriga o setor a discutir questões como igualdade de oportunidades, combate à discriminação (racial, sexual) e à violência de gênero. Na entrevista publicada abaixo, ela considera a aprovação dessa lei um “golaço” do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, avalia positivamente o governo nestes pouco mais de seis meses, mas sabe que há muito a reivindicar. E reconstruir.

Você assumiu o sindicato em um momento político do país bastante diferente. Um governo mais aberto ao diálogo, que recebe movimento social, o oposto do anterior. Isso ajuda ou aumenta a responsabilidade?

As duas coisas. Tanto aumenta a nossa responsabilidade, porque a gente veio de um governo de desmonte de direitos trabalhistas, previdenciários, um governo que atacava muito as mulheres, a educação, os professores, a cultura, a ciência e o movimento sindical em si. Acho que o Sindicato dos Bancários foi um dos poucos que conseguiu se manter sem muito impacto durante a reforma trabalhista, que além de tirar um monte de direitos também afetou as entidades sindicais.

Por outro lado, ter uma representação, ter alguém para levar nossas pautas, é muito importante. Na época da eleição, o presidente Lula recebeu as centrais, que entregaram um documento (a “pauta da classe trabalhadora”, da Conclat), colocaram as principais pautas que a gente queria em um projeto de país. A gente tentou entregar para outros (candidatos), inclusive, mas só o Lula recebeu. E assim que assumiu ele chamou os sindicalistas, tem um Ministério do Trabalho, a gente vai ter 11 ministras, e está aberto o espaço do diálogo. A gente ficou muito tempo sem entrar lá no Congresso Nacional, sem ir pra Brasília. Vocês que são da imprensa ficavam no cercadinho, imagine nós do movimento sindical, social. Não tinha espaço de discussão.

Como a gente tem uma convenção coletiva nacional, que está fazendo 31 anos, por força de acordo a gente sentava com o Banco do Brasil e com a Caixa. Mas, imagine, o presidente anterior da Caixa tinha não sei quantas denúncias de assédio sexual, de sadismo. Então, imagine o tipo de dificuldade que a gente tinha de negociar. Por um lado, temos interlocução, isso é muito bom, mas estamos num momento difícil, teve desmonte, desmobilização. A gente tem muitos desafios para organizar nossa base, pressionar o governo, que sofre pressão de todos os lados e que fez uma frente ampla para se eleger.

Está em disputa…

Por exemplo, essa questão de juros, todos mês a gente se junta para cobrar que o Banco Central mude a política, que baixe a taxa de juros, a mais alta do mundo, para que possa ter desenvolvimento social e econômico, tenha produção, emprego, renda. A gente sabe que com juros altos os empresários não vão querer investir na produção, vão ficar no rentismo. A gente está lá discutindo com o cara no Banco Central que está implementando uma política que é de outro governo, que perdeu as eleições. Então, a gente está “sindicateando”, como costuma dizer. A diferença é que tem interlocução.

E é um governo civilizado, que pelo menos vai receber a pauta, vai discutir. Talvez a gente não consiga avançar em todas as questões que a gente quer, mas pelo menos tem um processo mais civilizado de negociação coletiva. (…) Não era um lugar pra gente ir (Palácio do Planalto, Congresso), não era a casa do povo. Agora, estivemos lá várias vezes. Pelo menos não é mais um lugar alheio à gente.

Com pouco mais de seis meses, qual avaliação pode ser feita do governo? E quais devem ser as prioridades?

A gente tem que falar que é uma avaliação positiva. Nessa questão, a gente está num sindicato que é muito feminino: temos 50% de mulheres na categoria, 48% na direção, temos 12 diretores executivos, 10 são mulheres. E o comitê administrativo, o birô que comanda as decisões mais sensíveis, só tem mulheres. Então, pra gente, ver um governo que tem 11 ministras, preocupadas com a questão da igualdade salarial, defesa dos direitos, ciência, em políticas públicas, isso já é muito positivo. A gente tem lá no Banco do Brasil a primeira mulher (Tarciana Medeiros) em 214 anos. Não é pouca coisa, né? Nunca teve mulher qualificada, só agora que teve? Não, tem um governo que entende que as mulheres do movimento social, sindical, querem respostas.

Na Caixa Econômica Federal, apesar dos ataques que vem sofrendo, dos boatos, de fazer moeda de troca… Engraçado, todas as pressões para mudança são de ministérios chefiados por mulheres. E na Caixa tem uma pressão muito grande em cima da Rita Serrano. Um mês atrás, ela anunciou o conselho administrativo, que pela primeira vez tem mais mulheres.

Então, essas coisas para nós são muito positivas. A forma que o governo se manifesta em relação à política ambiental, que para a juventude é muito importante, defender os povos originários. Não se posicionava abertamente em relação a essa questão dos juros, que são nocivos à sociedade, impede as pessoas de empreender, de fazer um crediário. Mas a gente sabe que teve avanço na Petrobras, diminuiu o preço do gás de cozinha. Para a população pobre, isso é fantástico. Os índices de inflação estão diminuindo. A valorização do salário mínimo afeta positivamente a economia. A política de remédios, da Farmácia Popular.

Acho que um dos maiores desafios desse governo vai ser mesmo na questão tributária. Para nós, trabalhadores, falta muita coisa. A gente quer que quem pague o imposto de renda seja o super rico. Nas grandes fortunas, nas heranças, no latifúndio. Quem é assalariado paga na fonte. Agora, (proprietário) vai pagar no jatinho, iate, já é alguma coisa. Quem é super rico tem que pagar imposto de renda, quem ganha especulando na bolsa de valores. Como aconteceu, por exemplo, nas (Lojas) Americanas. Caras super ricos fraudaram a empresa para distribuir bônus altíssimos pros diretores e dividendos pros acionistas, em cima de uma fraude, os pequenos investidores perderam dinheiro e os trabalhadores perderam o emprego.

E a reforma trabalhista?

Acho que o grande desafio é a gente avançar na reforma sindical, para fortalecer os sindicatos, a negociação coletiva. Para conseguir colocar o pessoal que está no aplicativo em alguma segurança de negociação, porque eles estão totalmente jogados à própria sorte. Essas plataformas ganham milhões dizendo que você é um empreendedor. O cara vai lá, baixa o iFood, pega a bicicleta emprestada do Itaú, chega na porta, um cara fascista bate no cara…. A gente vê um montão de acidentes, as pessoas estão desamparadas. Como a gente vai regulamentar as pessoas que estão na informalidade. A reforma trabalhista prometeu um monte de empregos e só precarizou. Está tudo encadeado: se tem juros altos, não tem produção. A gente precisa fortalecer a indústria. É uma correlação de forças difícil, trabalho, mercado. Vamos pressionar o governo por essa pauta. E a gente sabe que tem outros atores pressionando para que o mercado decida tudo, inclusive sobre as políticas públicas.

Como é que se deu esse avanço da presença das mulheres?

É muita disputa, muita discussão, enfrentamento, mobilização, debate. Para você ter uma ideia: em 1983, quando a CUT nasceu, as mulheres não tinham uma secretaria. Tinha um departamento. Naquele momento, na CUT se dizia: classe é uma só, não vamos fragmentar classe. E a gente dizia: tudo bem, classe é uma só, mas tem dois sexos e as mulheres estão aqui ganhando menos, sendo violentadas, alijadas de direitos, não estão participando das grandes decisões, não estão no Congresso Nacional, nas grandes empresas. E a gente só foi ter uma secretaria (de mulheres) na CUT em 2003. E a gente brigou muito para ter a cota de 30% de um dos gêneros. (As mulheres não queriam vir para os sindicatos) porque os homens são machistas, porque tem assédio, desrespeito. Na época, as mulheres não tinham espaço. Primeiro, se organizou para exigir que tivesse uma cota de 30%, como tinha na Europa. A gente se apoiou muito nas convenções da OIT. E fomos discutindo, organizando as mulheres, para que elas tomassem a palavra nos espaços de poder, fizessem intervenções, não se deixassem intimidar pelos homens, que às vezes queriam cercear a palavra. Aqui nos bancários a gente tem um coletivo de gênero, a gente debatia, discutia texto, pensava como trazer as bancárias para o sindicato, como fazer as intervenções nas plenárias, como apresentar nossas propostas. Apanhava muito, mas ia se fortalecendo.

E aqui se criou um pensamento com essa turma de mulheres, a gente falava o seguinte: a gente não quer só isso, queremos estar nos espaços onde se discute política, onde se tomam as decisões. Vamos nos preparar, estudar, vamos fazer os mesmos cursos que os homens fazem, participar dos mesmos debates, para que a gente possa não só discutir a política de gênero, mas que a gente possa transversalizar isso em outras políticas. Juvandia foi a primeira presidenta em 87 anos de sindicato, Ivone foi a primeira presidenta mulher negra e eu vou ser a terceira presidenta em 100 anos. A gente começou a preparar a mulher para a luta política. Lugar de mulher é em todo lugar.

Veja que interessante, na paridade, hoje, a gente perde. O Sindicato dos Bancários ultrapassou essa questão da política afirmativa de cotas. Mas a gente defende que, onde não haja, que tenha paridade, que tenha cota de 30%. Por exemplo, no congresso da CUT (o 14º congresso nacional, que será realizado em outubro), a delegação que não cumprir 30% da cota perde delegado. Já nós vamos com uma delegação de 30% de homens.

Apesar desse crescimento, as mulheres também são maioria da população, elas têm uma subrepresentação nos parlamentos. Por quê?

É estrutura patriarcal, machista. O machismo estrutural impede as mulheres de ascender a alguns cargos, tem uma mentalidade que valora de forma diferente o salário do homem e da mulher. E tem essa coisa do cuidado, né? Como a gente vem de uma sociedade escravocrata, o Brasil é um dos poucos países… Você vai na Europa não tem essa figura da empregada doméstica. Aqui, tem uma visão ainda de que as mulheres que têm que ter cuidado com a comida, roupa, com os doentes, com os mais velhos. Tem uma cultura que a gente precisa romper. E o Brasil é o quinto país que mais mata mulheres. No dia da Convenção 190 (audiência pública sobre a ratificação da norma contra a violência e o assédio no trabalho), a gente estava lá, em solidariedade a seis deputadas que estão sofrendo processo de cassação por quebra de decoro. Quando o homem fala uma barbaridade, é normal. Quando a mulher usa uma palavra mais dura, está faltando com o decoro. O Senado há pouco tempo não tinha banheiro para mulheres. Então, é um espaço feito para que as mulheres não entrem. A gente está arrebentando as portas, mas tem uma violência de gênero o tempo todo. É uma sociedade ainda feita para homens e pelos homens. Quando a gente questiona, vem um carga de violência muito grande para cima das mulheres. Mas tem mais mulheres se interessando, muitas mulheres jovens querendo discutir.

Por exemplo, a gente tem uma campanha de combate ao assédio sexual, um canal de denúncias. Uma série de brincadeiras, de gracinhas, de comentários machistas que mulheres da minha geração, ou da geração da minha mãe, deixavam passar, achavam que era normal, elas denunciam, reclamam, não aceitam, querem mudança de postura. Então, é uma coisa que vai mudar. Agora, é uma cultura machista, patriarcal, escravocrata. A base da nossa estrutura é muito violenta.

Durante a pandemia, vocês fizeram um acordo específico sobre o home office, que pegou grande parte da categoria. Daqui para a frente, essa será uma realidade?

Então, é um mundo que está em transformação ainda. O home office veio para ficar, as pessoas gostam, principalmente do trabalho híbrido, tem muitas empresas que se adaptaram a esse sistema. Algumas tarefas não dá para fazer. Mas a gente está vivendo uma mudança tecnológica muito grande, tem muitas agências fechando, muito trabalho indo para o smartphone, a Inteligência Artificial que está chegando com tudo… Uma das grandes preocupações nossas é como vai ser esse novo mundo do trabalho, como a gente vai regulamentar a nova organização do trabalho, de forma a preservar a emprego e garantir que algum ganho da tecnologia venha para a sociedade. Você tem a indústria financeira que gera muito lucro, que deveria ter alguma responsabilidade social, está só diminuindo trabalho, aumentando tarifas e concentrando riqueza.

Os cinco maiores bancos lucraram 106 bilhões de reais (em 2022). Oito meses consecutivos de eliminação de vagas na categoria, que soma 4.771 vagas, só em maio foram 984. Ou seja, eles estão reduzindo postos de trabalho. Ao mesmo tempo, o sindicato está fazendo atividade nas ruas, a gente vai nas agências das periferias, lotadas. Porque os bancos escolhem os grandes centros para manter agência, o café, a butique, e na periferia a população amarga filas enormes, fica desassistida, e os trabalhadores estão com sobrecarga, e aí aumentam as doenças emocionais, doenças psicossomáticas.

Vai continuar esse trabalho híbrido, vai ter mudança no setor, e o sindicato tem que acompanhar. No caso da pandemia a gente foi rápido, acho que foi uma das primeiras categorias a ir para a mesa de negociação nesse assunto. Começamos a estudar uma série de questões que salvaram a vida dos bancários. Aí o movimento sindical tinha apoio dos médicos, dos técnicos. Conseguimos resguardar os trabalhadores do setor, conseguimos atender a população, que naquele momento estava vivendo de auxílio emergencial. O pessoal da Caixa sofreu muito, eles não puderam ir pro home office. Tanto nós como a federação dos bancos concordam que foi uma negociação muito boa. Essa mesa foi muito importante, acho que é um dos grandes marcos das nossas negociações modernas. Foi num momento de mudança tecnológica, uma pandemia que ninguém sabia do que se tratava. A gente teve que se adaptar a modelos de trabalho on-line, assembleia, eleição, fizemos votações com 20 mil pessoas. Foi uma loucura, mas conseguimos.

Os bancários já têm esse know-how na convenção coletiva, com a cláusula da igualdade de oportunidades. Durante a assinatura da lei da igualdade salarial, muita gente falou sobre a questão da lei “que pega”. Como fazer para que a lei seja implementada mesmo?

Primeiro, tem que ter fiscalização. Vai ter toda uma formação com os auditores-fiscais. É importante ter os sindicatos fortes, atuantes. No caso dos bancários, na convenção coletiva, na base (escriturários, caixas) todo mundo ganha igual. A discriminação conosco começa no momento das promoções. As mulheres são promovidas duas, três vezes, os homens não têm limites. Vamos ter que conseguir provar que há discriminação na promoção, que tem trabalho igual e salário desigual.

Os bancários são uma categoria forte, mobilizada, têm força na mesa de negociação, a gente vai conseguir fazer a fiscalização, para nós vai ser mais fácil para poder cobrar. Agora, em outros setores que não são tão organizados, a gente tem que fazer uma campanha forte para as trabalhadoras denunciarem, como a gente fez na questão do assédio moral, sexual, procurar o Ministério do Trabalho (que o outro governo extinguiu), obrigar que se aplique a lei.

Mas eu tenho certeza de que vai pegar, porque as mulheres estão muito antenadas com esse assunto. Elas sabem que ganham menos e que é muito injusto. É muito injusto, você ganha menos porque tem que trabalhar mais em casa, lavar, passar, cozinhar, cuidar de criança, tem uma cobrança terrível em cima da estética, da autoestima das mulheres, e tem que ganhar menos por causa disso? Acho vai pegar, e muito forte. Acho que o presidente Lula fez um golaço com essa lei. O desafio para nós é colocar as mulheres no mercado de trabalho. Aí a gente volta: baixar as taxas de juros, política de industrialização, produção, renda…. A (lei) Maria da Penha pegou.