urbanismo

Mania de GRANDEZA

Onda de construção de arranha-céus mundo afora é cultivada por setores da arquitetura, com a desconfiança de ambientalistas e urbanistas, que temem a especulação e o caos

VANDER FORNAZIERI/RBA

NOVO SKYLINE – A Freedom Tower, rebatizada de One World Trade Center, desponta no sul de Manhattan

Apesar do trauma coletivo, ninguém deu bola para a superstição, como a que leva tantos hotéis a pular do 12º para o 14º andar. Assim, 13 fatídicos anos depois daquele 11 de setembro está sendo inaugurado o One World Trade Center (OWTC), em Manhattan, onde ficavam as funestas Torres Gêmeas. Com 541 metros de altura, será o edifício mais alto do Ocidente, refletindo a tendência da arquitetura contemporânea de que o céu é o limite. O espigão mais alto do mundo – 828 metros – é o Burj Khalifa, em Dubai. Porém, num estalar dedos será inaugurada a Kingdom Tower, na Arábia Saudita: um quilômetro de altura. Enquanto isso, na China, quatro prédios ainda mais estratosféricos ganham as últimas pinceladas.

Por enquanto, este UFC de cimento e aço tem no OWTC o cinto de campeão provisório: o Council on Tall Buildings and Urban Habitat (CTBUH, Comissão de Edifícios Altos e Habitação Urbana, uma espécie de Fifa dos prédios) já confirmou solenemente que o novo espigão do Ground Zero mede mesmo 541 metros e é o mais elevado do hemisfério norte. O tira-teima era com a Willis Tower, de Chicago (de 1974, e conhecida na intimidade como Sears Tower). Situada no centro financeiro da terceira maior cidade dos Estados Unidos, a Willis alcança 442 metros, sem contar as antenas que a encimam – e era até agora o prédio mais alto do país.

Já com o OWTC, que tem como medida simbólica 1.776 pés (tributo ao ano da independência norte-americana), o bicho pegava por causa de uma dúvida: se o pináculo que o culminava fosse considerado uma antena, sua altura diminuiria. Na conta do CTBUH, antena não vale. A altura dos prédios é medida em duas categorias diferentes: da entrada mais baixa para o público a pé até um topo que não seja móvel; e até o piso mais elevado com ocupação (excluindo áreas de serviço ou casas de máquinas). O OWTC  acabou proclamado o mais alto do Ocidente, pois “a estrutura de seu topo é um elemento arquitetônico permanente, e não uma peça de equipamento funcional ou técnico”.

Além do OWTC, o novo Ground Zero inclui mais duas torres, um memorial, um museu e uma sala de espetáculos. A reconstrução do conjunto atrasou devido a picuinhas entre a prefeitura de Nova York, o governo federal norte-americano, construtores, companhias de seguros e famílias das vítimas (uma Babel de 372 nacionalidades).
Após os ataques de 2001, rolou muito bafafá sobre o futuro local do novo World Trade Center. Propostas fervilharam quase imediatamente, uma a uma ceifadas pela empresa Larry Silvertein, que detinha o contrato de aluguel para o World Trade Center na época dos atentados. Um projeto final para a Freedom Tower (Torre de Liberdade) foi finalmente aprovado em junho de 2005. Para cumprir as questões de segurança exigidas pela polícia de Nova York, uma base de concreto de 57 metros acabou incorporada à planta.

O desenho final incluiu também o revestimento da base com prismas de vidro, para desarmar as alfinetadas de que o arranha-céu parecia “um bunker de concreto”. Por fim, o design afunilou-se ­octogonalmente à medida que foi subindo­ rumo às nuvens. Em 2009, a Autoridade Portuária mudou o nome do prédio: de Freedom Tower para One World Trade Center, alegando que “fica mais fácil para as pessoas identificarem”.

Crescendo e aparecendo

Convém lembrar que, até o século 19, prédios com mais de seis andares eram raríssimos, à medida que um número elevado de escadas os inviabilizava. Sem falar na capacidade de pressão da água, que era incapaz de fluir acima dos 50 metros. O edifício mais alto da Antiguidade tinha 146 metros de altura: a Grande Pirâmide de Gizé, nos arredores do Cairo, construída no século 26 a.C. Aquele mausoléu de faraó inspirou uma das mais antigas piadas do mundo, da pena de um escriba de Tebas: “A própria forma das pirâmides não está lá senão para mostrar que no Egito, como em qualquer outro lugar, as pessoas trabalham cada vez menos”.

A revolução imprescindível para o advento de arranha-céus só aconteceu em 1852, quando o norte-americano Elisha Ottis inventou o elevador moderno, permitindo a deslocação cômoda e segura entre os andares. Outra inovação crucial foi o uso de estruturas de aço, em vez de pedras ou tijolos – caso contrário, os pisos inferiores de um prédio elevado fatalmente desabariam. O primeiro arranha-céu foi o Home Insurance Building, em Chicago, construído em 1884, com dez andares, elevadores à prova de fogo e fiação elétrica. Em pouco tempo, as metrópoles de Chicago e Nova York estavam em queda de braço pelos espigões mais espichados.

Nova York largou na frente. No início­ da terceira década do século 20 foram inaugurados – apesar da Grande Depressão – dois dos mais icônicos de todos os tempos. Em 1930, o edifício da Chrysler, de 319 metros e em estilo art déco – charmosíssimo, até hoje o favorito dos nova-iorquinos. Em 1931, brotou o Empire State, de 381 metros, e o primeiro com mais de 100 andares (103). Ostentou o título de mais alto do mundo até 1972, quando ficou pronto o World Trade Center.

Animal selvagem

Em 1955, o filósofo francês Jean-Paul Sartre visitou os Estados Unidos e pontificou: “Nova York é uma cidade que deve ser vista de cima”. Depois deu uma cachimbada e acrescentou: “O céu de Nova York é belo porque os arranha-céus o empurram, afastando-o das nossas cabeças. Solitário e puro como um animal selvagem, monta guarda e vela sobre a cidade. E não constitui apenas uma proteção local, visto que sentimos que ele se estende à distância sobre toda a América; é o céu de todo o mundo”.

A partir de então, a coqueluche dos arranha-céus se tornou viral. Em 1998, floresceram em Kuala Lumpur, capital da Malásia, as Petronas Twin Towers, majestosas estruturas gêmeas de 483 metros, assinadas pelo arquiteto argentino César Pelli – tão mirabolantes que foram cenário do filme Missão Impossível. Mas alegria de novo-rico dura pouco: em 2003 a coroa passou para o Taipei 101, longilíneo edifício na capital de Taiwan, logo entronizado como uma das Novas Sete Maravilhas do Mundo Moderno.

Se agora o OWTC ganhou a parada, não cantará vantagem por muito tempo – pelo menos em escala planetária. Mesmo o portentoso Burj Khalifa, em Dubai, com seus 828 metros, já tem a primazia ameaçada pela Kingdom Tower, em Jeddah (Arábia Saudita).

Estimada em US$ 28 bilhões, a torre saudita excederá o quilômetro de altura – mais precisamente, 1.023 metros (ultrapassará as primeiras nuvens da atmosfera). E é concebida para suportar as agrestes tempestades de areia do deserto (e, eventualmente, o tráfego de tapetes voadores).

O perfil das metrópoles planetárias (São Paulo, Hong Kong, Xangai, Cidade do México) degenerou numa espécie de paliteiro tamanho família. Muitas vezes, é verdade, os projetos brotam das pranchetas dos arquitetos mais talentosos do mundo. Outras vezes, a incontinência brega é deplorável, dando vontade de subscrever Mário Quintana: “O mais triste da arquitetura moderna é a durabilidade de seus materiais”.

Para inglês ver

E há outra ordem de objeções, não apenas estéticas. Em Londres, por exemplo. Até pouco tempo atrás, o horizonte da capital da Inglaterra era relativamente límpido: primeiro monopolizado pelas torres da Catedral de São Paulo, do século 17; mais recentemente, pelo conjunto de prédios comerciais do Canary Wharf, pelo espigão Gherkin e o piramidal Shard London Bridge (o edifício mais alto da Europa). Sem falar, claro, na fofíssima roda-gigante London Eye, de 135 metros de altura. E estávamos conversados. Tudo indica, porém, que em um piscar de olhos o skyline londrino ficará tão eriçado quanto uma paliçada de concreto: 236 torres já estão aprovadas, 189 destinadas a blocos residenciais, 26 a escritórios comerciais, oito a hotéis e 13 a uso misto. Segundo autoridades municipais, 68% desses espigões já começaram a ser construídos. Um terço deles terá entre 40 e 49 andares, e pelo menos 22 contarão com mais de 50 pisos.

No final de 2013, o prefeito de Londres, Boris Johnson, bufou alto e bom som: “Temos de erguer 42 mil novos ­lares todo ano”. Peter Murray, diretor do NLA, principal escritório de arquitetura da Inglaterra, cutucou: “Não tenho nada contra arranha-céus, mas precisamos entender o impacto deles. Afinal, estamos mobiliando o futuro”. Ele lembrou que a proliferação de novos espigões está ligada à inflação imobiliária: os preços exorbitantes incitam os construtores.

Para a oposição, é aí que o bicho pega. Darren Jonson, do Partido Verde, observa: “Os novos prédios estão e continuarão sendo comercializados a preços proibitivos. E o que é pior: acabam inflacionando os imóveis das vizinhanças. Assim, os trabalhadores que ainda moravam no centro de Londres são forçados a se mudar para muito mais longe, devido à disparada do valor dos apartamentos e dos aluguéis”.

Sir Edward Lister, secretário municipal do Planejamento, argumenta que é necessário conciliar a harmonia do horizonte londrino com a necessidade imperiosa de mais casas para 1 milhão de pessoas – obras que criariam 500 mil empregos. O próprio Peter Murray realça que a questão é complexa. “Hoje em dia, os cidadãos aceitam muito melhor as torres do que num passado recente, porque a arquitetura se tornou mais atraente do que era, por exemplo, nos anos 60. Muita gente passou a acreditar que os arranha-céus enfeitam a vista, em vez de poluí-la.”

Outros realçam que cada caso é um caso. O bairro de Battersea é cobiçado para um punhado de novos espigões. Mas vereadores locais não querem nem ouvir falar nisso, invocando desde razões culturais até ao nicho de skatistas que ali se divertem. Neste caso, o prefeito está do lado dos skatistas, nem que seja por razões econômicas: “Dê o Saara a um tecnocrata, e em poucos anos o deserto estará importando areia”.

O sobe e desce de Sampa

Em São Paulo, a bola da vez é o Plano Diretor da cidade, conjunto de diretrizes que regulará o crescimento paulistano nos próximos 16 anos. Entre as novidades anunciadas pelo relator do projeto, vereador Nabil Bonduki (PT), está o limite de oito andares para novas construções nos miolos dos bairros, especialmente os já apinhados. O próprio prefeito Fernando Haddad pôs o dedo na ferida: “Não queremos novos Itaims Bibis, com ruas estreitas e prédios de 25 andares, atravancando e encalacrando os locais”.

Por outro lado, a ideia é liberar os espigões nos grandes corredores viários, com estrutura de transporte adequada. Tudo com o objetivo de adensar, com empregos e moradias, as regiões dotadas de mobilidade. E, numa tacada só, limitar o crescimento populacional nos bairros já verticalizados e nas áreas rurais. Segundo o plano, haverá incentivos financeiros a construtoras que tocarem empreendimentos com comércio no térreo e limites para vagas na garagem em zonas centrais.

Por fim, o projeto prevê também a ampliação do número de casas para a população de baixa renda. Além de endereços para pessoas na faixa de até seis salários mínimos, serão delineadas as zonas especiais de interesse social (Zeis), para a tal nova classe média, de até dez salários mínimos. Se tudo der certo, a esperança é de que perca o sentido a resposta na lata dada pelo humorista Bussunda, quando lhe perguntaram qual o lugar mais estranho em que já tinha feito amor. Ele não pensou duas vezes: “São Paulo!”.