A viagem ao Grande Sertão
Um museu dedicado à língua portuguesa só podia ter inaugurado sua sala de exposições lembrando os 50 anos de Grande Sertão: Veredas, obra de Guimarães Rosa que define a identidade brasileira
Publicado 04/04/2013 - 12h35
Exposição faz o público interagir
João Guimarães Rosa une a antropologia da palavra com a liberdade de poder recriá-la: “Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e, como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isto significa que como escritor devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanha de cinzas”.
Nosso trabalho começou quando solicitamos que a obra de restauro da sala fosse interrompida e permanecesse inacabada. Percebemos logo que não poderíamos trabalhar com imagens. Não há imagens possíveis do sertão de Guimarães Rosa. As imagens seriam sempre simplificadoras de um sentido mais amplo, e por isso optamos por expor apenas palavras, num contexto de construção – da linguagem, do indivíduo –, com tijolo, terra, entulhos, latas de tinta, restos do restauro do edifício. Uma metáfora simplória.
Mas como usar palavras, trechos, fragmentar uma obra como Grande Sertão: Veredas, que não tem capítulos ou divisões internas? Decidimos expor a íntegra. Usamos todo o espaço do teto da sala para a colocação de cada uma das páginas. Estaríamos todos, o tempo todo, dentro da obra, bastaria acioná-la. Dividimos a exposição em sete percursos, sem dividir o ambiente – mas o olhar. O espectador caminharia pela sala sete vezes, cada vez direcionando sua visão para um foco. Construídos a partir de fragmentos do texto – Estudos para Obra e Original, Interlocutor, Batalhas, Diabo, Fragmentos, Riobaldo e Diadorim –, os percursos seriam mapeados no chão, e o espectador escolheria que caminho seguir.
De posse dos percursos, começamos a estudar como expor as palavras a partir do sentido de “mire e veja” que se apresenta no romance. Não basta olhar, temos de enxergar. As palavras teriam de ser conquistadas. Então, para cada percurso criado, o espectador teria de se disponibilizar para compreender.
No caso de seguir a trilha de Riobaldo, o caminho o levaria a ilhas de entulho com palavras soltas, ilegíveis. Uma escada construída com restos de madeira o direcionaria para um ponto. Desse único ponto, o texto, que parecia ilegível, se tornaria claro. Na trilha de Diadorim se encontrariam frases (escritas no avesso) cobertas por uma lâmina de água, contidas em galões. Para ler, o visitante precisa fazer uso de um espelho, que estabelece um diálogo com o ilegível. Diadorim se esconde e se revela durante todo o romance.
Sem procura não há revelação. “Visita, aqui em casa, comigo, é por três dias!”, diz Guimarães. Por isso o percurso do Interlocutor propõe que o visitante preste atenção e dedique um tempo até a descoberta das frases completas. De um único ponto do chão, com a ajuda de uma mira, o olhar do espectador consegue unir as consoantes e vogais e ler o texto, exposto em duas lâminas de acrílico.
No caso do Diabo, o percurso levaria o visitante para os cantos. Os textos estão escritos no chão numa pequena camada de terra, podendo se desfazer num sopro. Como num sopro, vem o medo, que nos atinge e nos abandona. O Diabo. Na trilha dos Fragmentos, textos escritos em tapetes e paredes de tijolos, cada palavra num tijolo. A linguagem explicitamente sendo construída. No caminho das Batalhas, a batalha – uma atitude extrema. Uma ação que Riobaldo não consegue explicar, e que só encontra sentido pela falta de sentido. Concretizamos esse conceito forçando a mão a bordar as palavras em painéis de madeira. A mão fere, não se borda madeira.
Os Estudos para a Obra estão expostos na janela – lugar simbólico da observação do mundo. O olhar de Guimarães varria os ambientes, colecionando e catalogando o mundo. Dos estudos a trilha leva para a obra, o Original, exposto em uma vitrine solta num corredor, onde não há nada – apenas bancos de frente para janelas, convidando o espectador ao descanso. Nas janelas cobertas por uma película, vemos a realidade do Parque da Luz, com a interferência da cor amarela – uma realidade transformada e inventada –, os sertões de Guimarães Rosa. Nossos percursos terminam assim – na obra original.
No todo, uma neblina interfere no espaço, dificultando um pouco o olhar – “Diadorim é a minha neblina”. No único espaço vazio e recluso da sala, o espectador é convidado a apenas ouvir a voz de Maria Bethânia lendo um trecho do romance, transformando os sons das palavras em palavras concretas. Como só ela faz.
No ambiente, uma composição sonora de Dany Roland, feita a partir de sons do sertão (captados por Julio de Paula), sons de metrópole, gravações de trechos do Fausto de Goethe (em alemão), do Crime e Castigo de Dostoievski (em russo), obras que dialogam com Grande Sertão: Veredas e compõem o universo de Guimarães Rosa. Juntando-se a esses sons, uma composição para piano pontua o universo misterioso de Diadorim.
Rompendo a nossa própria regra, o encontro de Riobaldo e Diadorim se faz presente numa única imagem na exposição. Dividindo o olhar, fomos em busca do todo da obra: “O sertão está em toda a parte”.
A obra
Em Grande Sertão: Veredas, João Guimarães Rosa constrói nova dimensão para o ambiente e as pessoas do sertão de meio século atrás, cenário do amor proibido de Riobaldo, o narrador, por Diadorim. Os conflitos psicológicos, a linguagem reinventada, a incomunicabilidade entre as classes são temperos da trama, que, para muitos especialistas, define a identidade brasileira. Ao completar 50 anos, o livro inspirou a diretora teatral e cenógrafa Bia Lessa a inaugurar o espaço de exposições temporárias do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. Quem já leu verá um espetáculo. Quem não leu verá dois.