Disputa de ideias

Marxistas veem ‘censura’ na mídia, na academia e no Judiciário

Grupos de trabalho e obras dedicados ao pensamento marxista enfrentam obstáculos, como a pressão da mídia conservadora, ações judiciais e impedimento ao acesso de financiamento

São Paulo – “A formatação proposta estaria no âmbito do método marxista histórico-dialético, cuja contribuição à ciência brasileira parece duvidosa.” Com essa observação, um parecerista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), agência de fomento acadêmico do governo federal, conclui sua decisão pelo não financiamento de um trabalho sugerido por uma parceria entre Universidade de Brasília (UnB), Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que tinha como objetivo analisar os efeitos da crise econômica mundial e o papel do Estado nesse contexto, além de analisar a situação contemporânea do Brasil.

Em resposta a itens anteriores do formulário de avaliação, o parecerista já havia apontado que a importância científica do trabalho “não é consensual”, que seria “pouco relevante” e que, em seu julgamento, “a utilização desse método (dialético-histórico) não garante os requisitos necessários para que se alcance os objetivos do método científico”. Nos itens técnicos, em que não coube a opinião pessoal do avaliador, o trabalho foi aprovado. O motivo da dispensa, no entanto, é o fato de que os professores “acabaram de participar” de um projeto financiado pela Capes, e, por isso, as bolsas deveriam ser oferecidas a outros candidatos.

De fato, o grupo coordenado pela pós-doutora em sociologia Ivanete Boschetti já havia trabalhado junto em um projeto inscrito no Programa Nacional de Cooperação Acadêmica (Procad), da própria Capes, que provocou duas publicações sobre as políticas sociais latinoamericanas e quatro seminários nacionais; naquela ocasião, sem veto ao método marxista. O trabalho foi desenvolvido entre 2006 e 2010, quatro anos antes da proposição de uma nova cooperação entre as universidades, o que causou indignação aos professores.

“É inaceitável que uma agência pública do estado democrático e republicano brasileiro subscreva pareceres ideológicos, tendenciosos, superficiais e inconsistentes, que se fundamentem no questionamento da opção teórica metodológica adotada em projetos de pesquisa, sem nenhum fundamento plausível”, assinaram, em carta aberta à Capes, os 19 pesquisadores envolvidos no projeto e 25 centros de estudo e entidades científicas, em apoio ao recurso apresentado pelos professores à entidade.

O caso, que remonta à censura ideológica praticada por regimes de exceção, como a ditadura civil-militar (1964-1985), não é isolado. Em agosto de 2013, uma decisão liminar da justiça conquistada por um advogado em São Luís, no Maranhão, levou ao fechamento do Centro de Difusão do Comunismo (CDC), da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). O programa de extensão, iniciado a partir do Núcleo de Estudos Marxistas em 2009 e unificado a outros projetos de estudo a partir de 2011, contemplava ações de ensino, pesquisa e extensão, além de organizar cursos de crítica ao capitalismo junto aos sindicatos de trabalhadores da mineração na região de Ouro Preto.

Apenas um mês antes da ação movida pelo advogado maranhense, com quem o professor André Mayer, coordenador do CDC, afirma nunca ter mantido contato prévio, a revista Veja já havia publicado texto acusatório contra o curso de extensão. O alerta dado pela mídia conservadora é uma das explicações para a ação movida contra o curso de extensão mineiro de uma distância de 1.990 quilômetros, e configura uma das formas de acionar os agentes de combate ao pensamento de esquerda, sobretudo no campo do ensino e da produção científica. Em 2007, a própria Veja foi uma das protagonistas do linchamento midiático contra o livro pedagógico “Nova História Crítica”, que, para os padrões da publicação da editora Abril, promovia visão excessivamente favorável dos eventos que levaram à revolução russa de 1917, à revolução chinesa de 1949 e sobre os movimentos camponeses, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).

O livro, que vendeu 10 milhões de exemplares e era a publicação de História mais vendida do Brasil, já havia sido retirado da lista do Ministério da Educação (MEC) para as licitações de escolas públicas quando as críticas começaram a surgir na imprensa, mas a disputa de ideias também envolve elementos econômicos. O Guia do Livro Didático do MEC também serve de orientação para as escolas particulares, mercado que a Editora Abril, que atua nos ramos da opinião pública e da educação, também disputa por meio da Abril Educação, núcleo da empresa que produz livros pedagógicos e que fatura aproximadamente R$ 1,2 bilhão por ano. Em 2011, a Veja voltou à carga ideológica contra outras publicações pedagógicas, como “Viver, Aprender” e “Vivências e Diversidades”, contra as quais ainda disputava licitações federais e estaduais.

Procurado pela reportagem da RBA, Mário Schmidt, autor de Nova História Crítica, hoje se recusa a falar com a imprensa. Sete anos depois de superar uma tentativa de assassinato de reputação, ele se dedica a colaborações com uma nova editora, e seu caso se une a outros episódios de intolerância no debate sobre os materiais pedagógicos no Brasil, como a censura, por parte da bancada fundamentalista cristã no Congresso Nacional, à cartilha de combate à homofobia que seria distribuída nas escolas públicas a partir de 2011, mas cujo cancelamento acabou sendo forçosamente incluído na negociação de votações sobre outras temas na Câmara dos Deputados.

É nítido o avanço do conservadorismo em todas as áreas. A intolerância no âmbito dos direitos humanos, a exemplo do reconhecimento dos direitos de livre orientação e expressão sexual, é uma expressão disso”, crê a professora Ivanete Boschetti, da UnB, cujo projeto foi recusado pela Capes. “A ampliação de bancadas reacionárias e de direita também expressa esse movimento. Vivemos tempos sombrios, de exacerbação do individualismo, de conformismo político e de intolerância à diversidade. A ditadura do ‘pensamento único’ está mais viva do que nunca, e temos que nos rebelar e reagir contra ela em todos os níveis”, defende.

Para ela, é importante manter e avançar conquistas democráticas conquistadas no campo da liberdade intelectual desde o fim do regime militar. “Vivemos longo período de ditadura em que o pensamento de esquerda foi perseguido, livros foram destruídos, docentes e discentes foram torturados, mortos e muitos tiveram que se exilar. A universidade é plural e nela devem caber todas as formas de pesquisa e de produção do conhecimento”, protesta. Ivanete afirma ainda não ter conhecimento de episódios similares relativos a projetos ligados ao pensamento neoliberal, mas faz outro alerta. “O que posso afirmar é que entre os 62 projetos aprovados no Edital 071/2013 (para projetos científicos), somente 10% são das áreas de ciências humanas e sociais”, avalia.

Esse cenário nega a percepção de que o meio acadêmico seria um ambiente de hegemonia do marxismo, argumento frequentemente utilizado para discutir restrições a projetos relacionados às teorias socialistas e comunistas. “O meio acadêmico hoje passa por um processo de ‘decadência ideológica’ e de ‘especialização mesquinha’, em um largo tempo de capitulação à ordem do capital. As universidades, hoje, conformam um grande CDC: Centro de Difusão do Capitalismo”, ironiza o professor Andre Mayer, do Centro de Difusão do Comunismo. Para ele, a existência pacífica de cursos de administração de empresas e de agências de fomento dentro das universidades é prova de que a censura ideológica existe apenas para o lado da esquerda.

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