Primeiros 100 dias

Organizações sugerem a Lula ações contra o racismo na saúde

Objetivo das propostas é melhorar a qualidade de vida da população negra. Nesse grupo estão os maiores índices de mortalidade materna,  óbitos por covid-19 e de insegurança alimentar grave

Paula Froes/Gov. Bahia
Paula Froes/Gov. Bahia
A população negra está em desvantagem também em questões de saúde, com os piores índíces epidemiológicos

São Paulo – O grupo técnico de Saúde da equipe de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recebeu nessa terça (29) propostas para a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra já nos primeiros 100 dias de governo. O documento foi entregue por pesquisadores, ativistas e gestores que compõem o Grupo de Trabalho Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e outras organizações da Aliança Nacional Pró-Saúde da População Negra.

Ações para a desinstitucionalização do racismo na estrutura do Ministério da Saúde estão na base das propostas para melhorar a qualidade de vida da população negra. Nesse grupo estão os maiores índices de mortalidade materna,  óbitos por covid-19 e de insegurança alimentar grave.

Por isso as organizações cobram, de maneira formal: um marco legal para a prevenção e punição da violência obstétrica e atenção às vítimas, e a obrigatoriedade da coleta do quesito raça/cor em todos os registros administrativos do setor. Além disso, um dispositivo pró-equidade no programa Mais Médicas e Médicos, com designação de profissionais para áreas de vazio assistencial.

“Revogaços”

As entidades reivindicam também a revogação de todas as portarias, leis, emendas e resoluções que no governo atual serviram para aprofundar desigualdades sociais, raciais e econômicas. Instrumentos que afetaram, de forma drástica, o acesso da população negra, direta ou indiretamente, aos espaços de saúde. Um exemplo é a Emenda Constitucional n° 95/2016, que criou o teto de gastos. Da mesma forma a Portaria MS nº 2436/2017, sobre a Política Nacional de Atenção Básica, e a Instrução Normativa INCRA n° 128/2022, que compromete a regularização e titulação dos territórios pertencentes às comunidades remanescentes de quilombos.


Confira a íntegra do documento

Enfrentamento das iniquidades raciais em saúde


Propostas do Grupo de Temático Racismo e Saúde da Abrasco em conjunto com as organizações, grupos e coletivos, liderados pela ONG Criola (RJ) e que compõem a Aliança Nacional Pró-Saúde da População Negra, para subsidiar o Grupo Temático Saúde da equipe do governo de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva.

Avaliação de Programas e Ações de governo (diagnóstico)

O racismo é o sistema de opressão que, de forma mais eficiente, define o tecido social brasileiro, determina caminhos da macro e microeconomia, macro e micropolítica. Ele restringe o exercício de direitos, as oportunidades de desenvolvimento e determina as condições de vida e saúde dos indivíduos e dos coletivos. Logo, em todos os espaços será necessário ter estratégias para enfrenta-lo.

Dados da PNAD/IBGE (2021) apontam que negros perfazem 56% da população total, 28% da população feminina e 48% da população idosa. O Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, liderado pela PUC-Rio, evidenciou que, enquanto 55% de negros morreram por covid 19, a proporção entre brancos foi de 38%. A razão de mortes maternas por causas diretas se mantém maior para as mulheres negras há anos (cerca de 2.5 vezes), em especial considerando eclampsia, pré-eclâmpsia, infecções puerperais e aborto. Em 2020, dos 565 óbitos maternos, 529 tinham informação sobre raça/cor, dos quais tiveram causa identificada do óbito. Neste conjunto, 309 óbitos maternos foram por causas diretas (253 mulheres pretas ou pardas; 126 brancas/ 20 indígenas ou amarelas).

Dados do SIVEP-Gripe atualizados em 09/novembro/2022 analisados pelo Observatório Obstétrico Brasileiro SRAG (OOBr SRAG), mostram que dos 18677 casos investigados de covid-19 entre gestantes e puérperas. 1844 evoluíram para óbito (61,1% eram mulheres pretas ou pardas). Estudos mostram que pessoas negras apresentam os piores indicadores em saúde bucal, que os idosos negros em todo o pais apresentam piores condições de escolaridade, renda, tem menos acesso a serviços de saúde e apresentam os piores indicadores de saúde, em relação aos idosos brancos. Viver em favelas ou nas periferias dos grandes centros urbanos, em comunidades quilombolas, em situação de rua, em privação de liberdade, conferem a esta população uma situação agravada de vulnerabilidade, e por consequência, maior risco de adoecimento e morte.

Embora haja um movimento intenso de produção acadêmica no sentido de ampliar as discussões sobre determinantes e determinação social em saúde, no Brasil e em outros países do mundo, as análises empreendidas com base no modelo dos determinantes sociais da saúde, adotado pela OMS (2010) ou mesmo aquelas empreendidas pela Comissão Nacional de Determinantes Sociais da Saúde, instalada em 2005, sofrem de um hiato de conteúdo crítico, em especial, no que diz respeito a relação entre racismo, discriminação racial, discriminação interseccional e saúde. É comum que os determinantes da saúde sejam abordados simplesmente como “fatores”, “contextos”, “circunstâncias” e condições”, ofuscando, sobremaneira, o entendimento acerca das articulações,das intersecções entre os múltiplos processos socioeconômicos, culturais, ecobiológicos, psicológicos e suas influências no processo saúde-doença cuidado-morte (Ayres, 2018; Lopes, 2021; Minayo, 2022).

Estilos de vida, hábitos, atitudes e comportamentos em saúde; estressores psicossociais, circunstâncias estressantes; condições desiguais de adoecimento, cuidado, tratamento, recuperação ou morte são derivados de uma estrutura de governança não responsiva às necessidades e expectativas de todos os grupos populacionais, em especial a população negra, os povos originários e outros grupos marginalizados (Werneck, 2016, 2022). Como descrito em diferentes tratados, convenções, declarações, planos de ação das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos (OEA), além de relatórios, estudos e pesquisas produzidos por especialistas independentes, o racismo é um processo ativo e deliberado, que se revela pela ausência do reconhecimento de necessidades e, por consequência, ausência de proteção e garantia de direitos.

O Brasil possui a 5ª maior população do mundo. Até o final de julho de 2022, o país ocupava a quarta posição mundial em relação ao número de doses aplicadas de vacina – 80,1% da população brasileira estava totalmente vacinada; ainda assim, ocupa a segunda posição entre os países com maior número de mortes por COVID-19 (mais de 677 mil vidas perdidas). De acordo com o relatório da OXFAM, o acesso a vacina é desigual. Há um feixe de desigualdades que se entrecruzam: socioeconômica, gênero, territorial, étnicas, raciais e geracionais.

A pandemia da covid-19, entre outros impactos, determinou a redução da diversidade de alimentos saudáveis ingeridos nos domicílios. De acordo com o Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, que reúne pesquisadores da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, em parceria de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade de Brasília (UnB), 41% da população reduziu o consumo de frutas, e 44% o de carnes. Entre aqueles em insegurança alimentar a redução no consumo de alimentos saudáveis foi de 85%. A insegurança alimentar grave é observada com maior frequência em lares chefiados por mulheres (73,8,%), por pessoas de cor parda (67,8), preta (66,8%), com crianças de até 4 anos (70,6%), mais pobres (71,4% entre domicílios com renda per capita de até R$ 500,00), localizados nas regiões Nordeste (73,1%), Norte (67,7%) ou em áreas rurais (75,2%). Mais de 60% dos domicílios negros que enfrentam a fome (falta ou redução da quantidade de alimentos entre moradores adultos e crianças), são chefiados por mulheres negras.

Estudos que se dedicaram a analisar dados oficiais produzidos e divulgados por autoridades publicas governamentais mostram que, de 2015 a 2017, houve mais de 24 mil notificações de violência contra população LGBTQIA+. Em média, quase uma notificação por hora. 75% dos casos registrados eram de violência física. 50% das vítimas eram negras, prioritariamente mulheres lésbicas e mulheres trans. Em 2019 foram registrados 124 assassinatos LGBTQ+ no Brasil. 121 travestis e mulheres trans. 82% eram negras. Em 2021 foram registrados 56.098 estupros, entre as vítimas estavam as pessoas do gênero feminino. Em 2021, o Brasil registrou um estupro a cada10 minutos e um feminicídio a cada 7 horas.

Em 2021, de acordo com as estatísticas oficiais, 68,1% dos novos casos de tuberculose foram notificados entre pessoas pretas e pardas, 29,8% das notificações eram entre pessoas brancas e 2,1% indígenas e amarelas. Neste mesmo ano, dos óbitos por tuberculose, cerca de 37% eram pessoas brancas e 65% negras (Nery, 2022). Este cenário atual, é uma forte evidência da operação do racismo, mas em 06 de novembro de 2006 o Conselho Nacional de Saúde (CNS) aprovou o mérito da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). O Ministério da Saúde a regulou por meio da Portaria 992 de 13/05/09, em consonância com a Constituição de 1988 de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” e reafirmada nos princípios do SUS, constantes da Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990 e com o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288 de 20/06/2010). Deste lugar é que os sujeitos políticos aqui representados apresentam tais demandas.

Proposta de ação para os primeiros 100 dias

  • Definição do locus institucional da PNSIPN, designação da autoridade sanitária federal que se responsabilizará por sua gestão e inclusão de orçamento especifico para a PNSIPN no PPA;
  • Obrigatoriedade da formulação e acompanhamento de indicadores de esforços e resultados, os quais devem ser periodicamente publicizados nos canais oficiais do Ministério da Saúde e outros (accountability);
  • Garantia e fortalecimento da participação social na formulação, avaliação monitoramento da Política, potencializando as instâncias de controle social através da retomada da comissão de saúde da população negra no Conselho Nacional de Saúde;
  • Obrigatoriedade da coleta quesito raça/cor em todos os registros administrativos do setor saúde, analise e divulgação de informação em saúde baseadas em dados desagregados e dados cruzados;
  • Inclusão, das Matrizes de Competências da Residência Médica em Saúde, as temáticas previstas na Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, como previsto nas Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de Medicina;
  • Revisão de todos os protocolos clínicos, cadernos, guias e outras publicações do MS, com vistas a subsidiar a implementação de ações pró-equidade para redução de doenças, agravos e mortes por causas evitáveis na população negra;
  • Revisão de indicadores de processos e resultados, implementação de ajustes de rota e adequação dos projetos PROADIs e outros de cooperação técnica, para garantir o efetivo cumprimento das portarias que regulamentam a lei federal 1288/2010;
  • Implementação de ações para redução das mortes maternas entre mulheres negras e formulação de plano de ação orientado para a mitigação dos efeitos da violência e do racismo institucional na atenção a saúde da mulher, com atenção especial para a atenção ginecológica e obstétrica;
  • Instituição de marco legal para a prevenção e punição da violência obstétrica e atenção às vítimas;
  • Implementação da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias (portaria ministerial 1391, de 16 de agosto de 2005) e inclusão da Doença Facilforme entre as doenças negligenciadas e de notificação compulsória;
  • Garantia de que a agenda de pesquisa sobre racismo e saúde da população negra, seja prioridade na política nacional de ciência, tecnologia e inovação em saúde;
  • Garantia de investimentos para uma produção intencional de conhecimento que subsidie os processos de tomada de decisão nas diferentes esferas de gestão do SUS (PPSUS) com vistas à promoção da equidade em saúde, incluindo estudos sobre a pandemia da covid19 na população negra;
  • Estabelecimento de um dispositivo pro-equidade no âmbito do Programa Mais Médicas e Médicos, com designação de profissionais para áreas de vazio assistencial;
  • Atuação interministerial, emergencial para o enfrentamento dos impactos da pandemia da Covid-19 na população negra, priorizando o acesso a vacinação e outros insumos, ao tratamento e à recuperação, à segurança alimentar e nutricional, à habitação e ao saneamento básico, assistência social;
  • Revogação de todas as portarias, leis, emendas e resoluções que enquadram no cenário de exclusão pela ampliação dos ciclos das desigualdades sociais, raciais e econômicas em dimensões preocupantes, priorizando inicialmente a Emenda Constituição 95 de 2016, a Portaria MS nº 2436/2017, referente a nova Política Nacional de Atenção Básica, a Portaria nº 2972/19 tocante ao Previne Brasil, a Nota Técnica 11/2019- CGMAD/DAPES/SAS/MS, concernente ao retrocesso no campo da Saúde Mental e ainda a Instrução Normativa INCRA n.128/2022, que compromete a regularização e titulação dos territórios pertencentes às comunidades remanescentes de quilombos.

Outras prioridades a serem incorporadas a curto prazo são:

  • Fomento à estudos e pesquisas sobre uso de cannabis medicinal, regulamentação e ampliação do escopo de uso;
  • Retomada do processo de demarcação e titulação de terras quilombolas, uma vez que o bem viver e a saúde das populações quilombolas estão diretamente relacionados a terra e território;
  • Enfrentamento ao racismo religioso na saúde e reconhecimento dos espaços afro-religiosos como espaços de acolhimento e promoção da saúde;
  • Formulação e implementação de uma nova política de combate as drogas;
  • Implementação, monitoramento e avaliação de políticas de promoção e atenção à saúde para população em situação de rua e população prisional;
  • Formulação de uma política de formação e educação permanente antirracista e pró equidade para todos os servidores públicos federais, em parceria com ENAP e outras instituições;
  • Aprovação do piso salarial para a enfermagem, categoria profissional que conta com uma grande presença feminina e negra; seguido da aprovação do piso salarial para outras categorias profissionais da saúde.

Assinam este documento

  • Ação de Mulheres Pela Equidade – AME
  • ACMUN- Associação Cultural de Mulheres Negras
  • Aneps – Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde
  • Articulação de organizações de Mulheres Negras Brasileiras – AMNB
  • Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadores
  • Associação Afro- Cultural Casa do Mensageiro
  • Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAÍ)
  • Ayomidê Yalodê Coletiva de Mulheres Negras e LBTs
  • Baobá Neuropsicologia
  • Central de movimentos populares/PE
  • Coletivo de Mulheres Mensageiras Marcolinas
  • Coletivo NegreX – Coletivo de Estudantes de Medicina e Médices Negres
  • Coletivo Negro Fiocruz
  • Comitê Pro-equidade de Gênero e Raça da Fiocruz
  • Criola
  • Fórum de Mulheres da Amazônia Paraense – FMAP
  • Grupo de mulheres yepondá
  • Ilé Àse Ti Tóbi Ìyá Àfin Òsùn Alákétu
  • ILERA/ENCONTRO DE SAÚDE DA POPULAÇÃO NEGRA DO IMSCAT/UFBA
  • Instituto de Mulheres Negras de Vera Cruz (IVELCRUZ)
  • Kurandeiiras Saberes Ancestrais- Juventudes Vivas
  • Laboratório de Estudos Bioantropológicos em Saúde e Meio Ambiente – LEBIOS, Pará.
  • Makandra Juventude e AIDS
  • MAV/Movimento Afro Vegano
  • Movimento Bragantino LGBTQIAP+
  • Movimento Negro de Alagoas
  • Movimento Negro Unificado
  • Movimento pela Saúde dos Povos – MSP
  • Niketche: transformando realidades
  • Núcleo de Estudos Afro Brasileiro DF – Neab/CEAM/UnB
  • Núcleo de extensão e pesquisa com populações e comunidades Rurais, Negras, quilombolas e Indígenas,
  • do Depto. de Sociologia e Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Saúde e Ambiente da
  • UFMA/Maranhão.
  • Observatório da Saúde da População Negra (Nesp/Ceam-UnB)
  • OGBAN
  • Pastoral Afro da CNBB, regional Sul 1
  • Prevenção para Todxs
  • Produção Preta
  • Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Sociedade na Amazônia da UFPA, Pará.
  • Rede Brasileira de População e Desenvolvimento/REBRAPD
  • Rede Mulheres Negras – PR.
  • Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas – RENFA
  • Rede Nacional de Lésbicas e Bissexuais Negras Feministas – Candaces
  • Rede Nacional de Promoção e Controle Social da Saúde, Cultura e dos Direitos das Lesbicas e Mulheres
  • Bissexuais ( Rede Sapatà)
  • Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde – RENAFRO.
  • Rede Nacional Lai Lai Apejo – saúde da população negra, HiV e AIDS
  • União de Negras e Negros pela Igualdade – UNEGRO
  • União Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais