Apagamento da história?

Procuradoria questiona decisão de ocultar nome de agente da ditadura de relatório da Comissão da Verdade

Para ex-presidente da Comissão da Verdade, postura da União ao não recorrer foi “vergonha”, sequência da falta de combate à impunidade no Brasil

Arquivo Público Pernambuco
Arquivo Público Pernambuco
Amaro, militante político, foi assassinado em 1971 quando estava na prisão. Autópsia demonstrou farsa do 'envenenamento'

São Paulo – Nascido em Barreiros (PE), trabalhador rural e têxtil, e militante do PCR, Amaro Luiz de Carvalho, o Capivara, tinha 40 anos quando apareceu morto na Casa de Detenção de Recife, em 22 de agosto de 1971, um domingo. Estava preso naquele local por “subversão”. A Secretaria da Segurança Pública de Pernambuco falou em envenenamento, mas a versão não se confirmou. Amaro, conforme demonstrou a autópsia, morreu em consequência de hemorragia pulmonar causada por “instrumento contundente”. Assim, morreu na verdade por ação direta de agentes do Estado, concluiu a Comissão Nacional da Verdade (CNV), incluindo o nome do coronel da PM Olinto de Souza Ferraz entre os responsáveis por graves violações de direitos humanos na ditadura. Isso porque ele era o responsável pela prisão naquele período. Agora, a pedido da família do militar, que já morreu, seu nome foi ocultado no relatório da CNV.

A decisão foi da 6ª Vara Federal de Pernambuco. Na ação, que correu em sigilo, familiares pedem que a União não faça “qualquer menção a tortura com participação direta ou indireta por ação ou omissão”, além de dar publicidade a esse “erro”. Estranhamente, a União não recorreu. Mas a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC) contesta. A procuradora titular, Natália Lourenço Soares, e a adjunta, Carolina de Gusmão Furtado, pedem a abertura de uma ação rescisória contra a decisão judicial. Elas observam, por exemplo, que o Ministério Público Federal nem chegou a receber intimação no processo.

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Censurado: nome do coronel Olinto Ferraz ganha tarja preta por decisão judicial (Reprodução)

“Vergonha”

Apesar de figurar na lista, o coronel da PM não é citado como torturador. A CNV, no relatório final, criou três categorias de responsabilidade pelas graves violações de direitos humanos, com 377 nomes. Olinto Ferraz está na categoria b, de “responsabilidade pelo controle de estruturas e pelos agentes de procedimentos”. São aqueles que permitiram, por ação ou omissão, a ocorrência de atos ilícitos. A primeira inclui os presidentes da República, no topo da cadeira de comando, e a terceira, os que efetivamente cometeram atos de violência.

“A Comissão entendeu que não podíamos restringir a autoria (das violações) apenas a essa terceira categoria”, observa o jurista e professor Pedro Dallari, ex-presidente da CNV. Desse modo, ele considera a decisão judicial e a inércia da AGU “uma convergência de situações lamentáveis”. Mas faz distinção entre uma e outra.

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A antiga Detenção hoje abriga a Casa da Cultura de Pernambuco (Reprodução)

Para Dallari, a decisão da 6ª Vara é “falha”. “O capítulo 16 (do relatório da CNV) diz com toda clareza que não estamos responsabilizando criminalmente alguém”, lembra o ex-presidente, observando que cabia ao colegiado indicar autorias. No caso, um preso (Amaro) foi morto sob custódia do Estado brasileiro em uma prisão à época comandada por um coronel da PM (Olinto Ferraz). Mas, embora faça críticas, o jurista considera a decisão judicial de Recife uma exceção, porque não reflete o que tem sido a postura do Judiciário: “Todas as iniciativas contra a Comissão Nacional da Verdade foram infrutíferas”.

Já a postura da AGU ele considera uma “vergonha”. Um reflexo claro, segundo Dallari, da influência de um governo que defende a ditadura. Contudo, ele ressalta: o relatório da Comissão da Verdade “é um documento oficial do Estado brasileiro”.

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(José Cruz/Agência Brasil)

Dallari: mesmo governos progressistas não enfrentaram a questão. Mas o relatório da Comissão Nacional da Verdade é ‘documento oficial do Estado’


Nesse aspecto, Dallari vê problemas dos dois lados. Se o atual governo tem no comando um defensor explícito da ditadura e suas atrocidades, alguns dos que o antecederam relutaram em tocar no tema. “De maneira geral, os governos não enfrentaram esse problema da memória. Não combateram a impunidade”, lamenta, ao lembrar que países vizinhos responsabilizaram e prenderam agentes da ditadura, inclusive mandatórios. “Somos todos culpados.”

Mesmo durante os trabalhos da CNV, houve obstáculos de toda natureza. Das Forças Armadas, principalmente, pois se recusava a fornecer documentos e informações. “Nós tivemos que ir à Justiça para obter informações das Forças Armadas”, lembra Dallari. Outra resposta comum da caserna era alegar que muitos documentos do período haviam sido queimados.

Mas toda a resistência, passada e presente, mostra a importância do relatório, afirma o ex-presidente da Comissão da Verdade. “É um documento muito robusto, totalmente lastreado em fatos.” Ele observa que a própria família do coronel, na ação, não questiona o que está relatado. Isso porque a falsa alegação de envenenamento foi desmentida pela autópsia feita naquele mesmo período, lembra. “Descreve todos os eventos que já na época comprovam que a história era falaciosa.”

A detenção tornou-se Casa da Cultura, ponto turístico obrigatório da capital pernambucana. As celas viraram lojas de artesanato. Apenas está mantida deixada como era. Por ali passaram presos políticos como Antônio Silvino, Gregório Bezerra e Graciliano Ramos. E Amaro Luiz de Carvalho, morto pelo Estado.