direitos humanos

Comissão da Verdade entrega a Dilma relatório sobre crimes de Estado na ditadura

Conclusão final do colegiado resulta de dois anos e sete meses de trabalhos para apurar e esclarecer graves violações de direitos humanos praticadas pela repressão, entre 1946 e 1988

Presidência da República

Dilma recebe relatório final da Comissão da Verdade

Brasília – O relatório final da Comissão Nacional da Verdade foi entregue hoje (10) em cerimônia oficial no Palácio do Planalto à presidenta Dilma Rousseff. Dividido em três volumes, o relatório é o resultado de dois anos e sete meses de trabalho da Comissão Nacional da Verdade, criada pela Lei 12.528/2011.

Instalada em maio de 2012, a CNV foi criada para apurar e esclarecer, indicando as circunstâncias e a autoria, as graves violações de direitos humanos praticadas pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988 (o período entre as duas últimas Constituições democráticas brasileiras) com o objetivo de efetivar o direito à memória e a verdade histórica e promover a reconciliação nacional.

Para isso, a CNV adotou preceitos internacionais e delimitou que as graves violações de direitos humanos são as cometidas por agentes do Estado, a seu serviço ou com a conivência/aquiescência estatal, contra cidadãos brasileiros ou estrangeiros.

 

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CNV chega em sua hora da verdade; movimentos esperam punições

Por Vitor Nuzzi. da RBA

Cerimônia discreta, diferente de quando a Comissão Nacional da Verdade foi instalada, em maio de 2012, quando compareceram os ex-presidentes do período democrático, pós-1964. A partir das 9h de hoje (10) – data que coincide a aprovação, pelas Nações Unidas, da Declaração Universal dos Direitos do Homem –, os seis integrantes da CNV entregam seu relatório final à presidenta Dilma Rousseff. À tarde, o documento será entregue ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Antes, um ato público está programado para as 11h, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Brasília. Se alguns não alimentam tanta expectativa, todos os movimentos de direitos humanos e de familiares de vítimas da ditadura esperam pelo próximo passo: a responsabilização de agentes do Estado por graves violações aos direitos humanos, com as consequentes ações judiciais.

Também será uma oportunidade para o país discutir, de forma mais aberta, o que aconteceu de 1964 a 1985, quando o último general-presidente deixou a Presidência da República. “Se não tem o poder de punir, tem o de revelar fatos históricos, esclarecer dúvidas, apontar culpados e definir o papel de cada um na cadeia de comando do Terror de Estado”, disse em sua coluna, dias atrás, o escritor Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado Rubens Paiva, desaparecido em 1971. “Acima de tudo, com atraso e sob a proteção da Lei da Anistia, corrigir o erro histórico grave, o de esconder a verdade.”

“Qualquer pessoa sabe da independência, da abolição, da revolução de 1930, mas não sabe nada sobre o golpe de 64”, observa o deputado Nilmário Miranda, ex-preso político e primeiro ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. A partir da divulgação do relatório, ele espera que se crie “um marco definitivo” sobre esse período da história brasileira. “A verdade e a memória viraram um direito. O objetivo maior disso é a não repetição, é consolidar a cultura democrática”, afirma.

Ele reage com vigor a quem diz que seria necessário investigar os “dois lados” da história: o Estado e seus opositores. “Não tem esse esse negócio de dois lados. O outro lado pagou com mortes, desaparecimentos, demissões, sequestros, violência até contra bebês. O lado que enfrentou a ditadura já pagou por isso.”

O coordenador da Comissão Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul, Carlos Guazzelli, reforça. “O lado que se rebelou foi julgado. A ditadura brasileira tinha uma lei para julgar os adversários, a Lei de Segurança Nacional, e uma Justiça (militar). Todos foram processados e julgados. A própria Dilma cumpriu três anos de cadeia. O Carlos (Araújo, ex-companheiro de Dilma) cumpriu quatro anos. E além disto foram castigados ilegalmente. Não tem dois lados para serem julgados, porque um já foi, e por uma lei ilegítima”, sustenta. “O outro lado já foi punido. Isso tem de ser contado nas escolas.”

“Foi em nome da democracia que eles fizeram o golpe”, afirmou na última segunda-feira (8), durante ato em São Paulo, a advogada Rosa Cardoso, integrante da CNV. “Essa bandeira é nossa, essa é a nossa palavra de ordem.” Para ela, o documento a ser divulgado hoje terá o mérito de estimular “um grande debate nacional” e demarcar diferenças entre um regime democrático e uma ditadura. E também influenciar o Judiciário, até aqui resistente a encampar ações envolvendo agentes do Estado acusados de graves violações aos direitos humanos.

Já existe um movimento pela criação de um órgão permanente que continue investigando denúncias relativas ao período de exceção. A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, da Assembleia Legislativa, incluiu entre suas recomendações a criação de uma comissão permanente de investigação dos crimes da ditadura. A comissão gaúcha apresentou proposta semelhante: apresentar um projeto de lei para reinstituir a CNV de forma definitiva, na estrutura administrativa da União e preferencialmente na Secretaria de Direitos Humanos.

Centrais sindicais superaram divergências e fizeram relatório conjunto, em um dos grupos de trabalho da CNV, no qual pedem punição a empresas e empresários que “participaram material, financeira e ideologicamente para a estruturação e consolidação do golpe”. Foi elaborada uma lista 114 trabalhadores urbanos, vítimas do regime autoritário, e com pouco mais de 20 empresas apoiadoras da repressão. Também se pede a desmilitarização da PM e a descriminalização dos movimentos sociais.

Presidente da comissão paulista, o deputado estadual Adriano Diogo (PT) considera que essa discussão está apenas começando no Brasil. “Não houve nenhuma responsabilização”, diz, referindo-se a empresas que financiaram e apoiaram a ditadura. Ele acredita que muitos temas importantes ainda ficarão de fora do relatório final, relacionados a índios, a relação da ditadura com o futebol e saúde mental, entre outros. No tripé memória, verdade e justiça, o parlamentar avalia que o país avançou praticamente no primeiro item e engatinha no segundo.

Sem medo

Mesmo assim, algo mudou nos últimos anos. “O mais marcante, para resumir, é que perdemos o medo. Não podíamos falar dos empresários, dos americanos, dos franceses. E agora está todo mundo falando.” Para a frente, ele espera por “mais abertura de arquivos e mais revelações”.

Os movimentos cobram ainda o Estado brasileiro para que cumpra sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o caso Araguaia, para uma efetiva investigação daquele episódio. E que se removam obstáculos representados pela Lei da Anistia, de 1979. “As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana (sobre Direitos Humanos), carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil”, diz um trecho da sentença, de 2010.

A procuradora da República Eugênia Gonzaga, presidenta da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, acredita que o relatório de hoje inicia uma nova fase, para implementar a justiça de transição no país. Ela espera, inclusive, que o STF reveja sua posição a respeito da Lei da Anistia. “Esperamos que toda essa pressão faça com que finalmente o Supremo Tribunal Federal, que hoje é composto por outros ministros, assuma a sua responsabilidade.” Em abril de 2010, o STF considerou improcedente, por 7 a 2, um pedido da OAB contrário ao perdão a representantes do Estado acusados de violações de direitos humanos.

A CNV colheu 1.120 depoimentos, incluindo 132 de representantes do Estado no período, e realizou 80 audiências públicas. O relatório terá aproximadamente 2 mil páginas. O número oficial de mortos e desaparecidos políticos deverá aumentar de 362 para 434. O coordenador da comissão, Pedro Dallari, declarou mais de uma vez que a repressão não era pontual, mas fazia parte de uma espécie de “política pública”.

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