Historiadores tentam diagnosticar as ‘viradas’ que definiram a identidade do PT

Debate sobre livro que narra a história do partido traz reflexões sobre avanços e contradições

Aos 32 anos, o PT preside o país há nove, tendo vencido a eleição justamente no momento em que, para Lincoln Secco, era mais fraco do ponto de vista da radicalidade (Foto: Mário Agra. Divulgação PT)

São Paulo – Os rumos de um partido jovem, que com 22 anos de existência chegou à Presidência da República e com três décadas se institucionalizou no mundo político, foram o ponto central de um debate realizado ontem (7) à noite, em São Paulo. Três historiadores tentaram precisar em que momento o PT deu a “virada” que permitiu levá-lo ao governo, mas à custa de certo distanciamento dos valores de origem. Esses questionamentos surgiram durante evento que discutiu o recém-lançado livro “História do PT”, de Lincoln Secco. “O coroamento do período de lutas sociais é a derrota eleitoral (em 1989). No momento em que o partido era socialmente mais fraco, do ponto de vista da radicalidade, ele ganha a eleição (em 2002)”, comenta o pesquisador.

Ele divide a formação do partido em três períodos. O primeiro – entre 1978 e 1983, incluindo portanto um momento anterior ao da fundação do PT, em 1980 –, de formação, “ainda sem clareza sobre o papel de uma campanha eleitoral”. O segundo, de 1984 a 1989, se caracteriza pela hegemonia nos movimentos sociais, pela fundação de entidades como a CUT e o MST e a formação da Frente Brasil Popular, que quase levou Luiz Inácio Lula da Silva à vitória contra Fernando Collor.

A essa altura, ele cita “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, obra de Karl Marx. Enquanto na Revolução Francesa grupos moderados vão sendo substituídos por grupos radicais, na Russa ocorre o contrário. De forma semelhante, o PT passaria por um processo de consolidação que inclui mudanças de fundo, após um cenário adverso nos anos 1990 – refluxo do movimento sindical causado pelo desemprego, enfraquecimento dos setores de esquerda na Igreja e uma certa “profissionalização” da política, com reflexos na militância.

“Esse partido vitorioso em 2002 já não tem mais os núcleos de base e a militância dos anos 1980, foi varrido pelo neoliberalismo. Desse ponto de vista, é fraco ideologicamente, no entanto vence as eleições”, diz Lincoln. A presença no governo também traz desgaste: “O partido tem o ônus de defender o governo, mesmo com medidas impopulares, mas não tem o bônus de dirigi-lo, porque se trata de um governo de coalizão.”

Mas o autor não considera abrupta essa mudança. Nesse item, discorda do pesquisador André Singer, que situa esse rompimento basicamente em 2002, no período em que a direção do partido se reuniu no Anhembi, em São Paulo, e ratificou os termos da Carta ao Povo Brasileiro, documento que buscava tranquilizar os espíritos ressabiados com uma possível vitória eleitoral de Lula. Assim, o “espírito do Sion” (referência ao colégio onde foi fundado o partido) estaria submetido ao “espírito do Anhembi”, ou seja, mais pragmático. Para Lincoln, as mudanças de postura do PT não aconteceram apenas a partir de uma decisão tomada naquele período, mas foram ocorrendo ao longo do processo.

O historiador e cientista político Marcos Del Roio, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), identifica o PT como um partido liberal, “por limite histórico”. Também cita Marx, ao identificar “a classe que se fez partido”: “Essa é a parte forte, admirável, do PT”. Mas sem proposta de abolição do capitalismo e sem transformação socialista, acrescenta. “No período 1984/1989, houve pressão por uma revolução democrática. Mais uma vez, não deu.”

A “virada” teria ocorrido em 1991, quando o partido realizou o seu primeiro congresso. “A derrota de 1989 foi tão catastrófica que o PT ficou atordoado”, diz Del Roio. Foi ali, segundo ele, que o sociólogo Florestan Fernandes identificou a guinada para a social-democracia. “Depois desse congresso, o discurso liberal é assumido abertamente”, afirma o historiador. “É o discurso da ordem, da reforma dentro da ordem.”

Para o professor José Rodrigues Máo Junior, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), não se pode dizer que o PT foi liberal desde o início. “O PT era tão heterogêneo que era impossível ser uma coisa ou outra”, diz. Para ele, o partido foi resultado de um processo de ascensão das massas, mas foi se “domesticando” à medida que se institucionalizou. Em certo momento, passa a privilegiar a via política e a se preparar para disputar eleições, desmobilizando a militância. “Qual foi o erro do PT? Foi se adequar à institucionalidade”, afirma.

Lincoln Secco lembra que também não se podem ignorar as transformações sociais que, em boa medida, tiveram a participação do PT. À crítica feita por Del Roio de que o partido “não educa politicamente”, ele diz que – apesar nunca ter uma “filosofia oficial – em alguma medida “o PT civilizou a sociedade civil”. “Isso significa algum grau de educação política”, sustenta, mesmo que tênue e disperso. A uma pergunta da plateia, sobre o que Florestan Fernandes acharia do PT de hoje, Lincoln disse que não poderia responder, mas lembrou que o sociólogo ficou no partido até morrer (em 1995).

Além disso, uma parte das demandas sociais se tornou política pública. E acha cedo para avaliação do chamado lulismo, ainda um processo em andamento. “Temos de lembrar que grande parte da base social do PT queria esse tipo de política”, observa. Para ele, o partido não cumpriu suas tarefas históricas, mas trouxe benefícios a milhões de pessoas no país. Além disso, a legenda teve de enfrentar um “dilema prático, não teórico”: sua dificuldade de comunicação com a classe média tradicional, já estabelecida e numerosa, principalmente no Centro-Sul.

Sua última intervenção, ao final de mais de duas horas de debate, fez referência à relação com setores militares e uma dificuldade do país de superar algumas questões históricas. Ele lembrou que Ulysses Guimarães chamou de “facínoras que mataram Rubens Paiva” os responsáveis pelo desaparecimento do ex-deputado. “Quem diz isto no Brasil de hoje: ‘Os facínoras que assinaram aquela vergonhosa carta do Clube Militar’? Nem a tutela militar foi resolvida.”

O debate foi promovido pelo Centro de Documentação e Memória (Cedem) da Unesp.