Feridas

Chile, 50 anos depois do golpe: dores e memórias de um país ainda dividido

Para escritor, polarização política continua presente, às vésperas dos atos que lembrarão ruptura democrática

Commons Wiimedia
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São Paulo – “O golpe de Estado, para muitos, foi o período mais obscuro da história política recente e para outros, lamentavelmente não poucos, um mal necessário para salvar a liberdade e a democracia. No 11 de setembro, em algumas casas do nosso país se celebrava com champanhe o golpe de Estado e em outras, se chorava com amargura”, diz o escritor chileno Antonio Ostornol. O autor de Los recodos del silencio participou de debate para lembrar dos 50 anos do golpe do Chile, deflagrado em 11 de setembro de 1973, que acabou com o governo eleito do socialista Salvador Allende e abriu um longo período de repressão no país vizinho.

Militante comunista, com 19 anos em 1973, Ostornol estava convencido sobre a revolução que seria feita no Chile. “Um dia depois do golpe, me dei conta que minha missão era sobreviver.” O fracasso, como diz, foi tão grande, que não se limitou ao Chile. E a ditadura acabou no mesmo período em que “morria a utopia marxista e se punha fim à Guerra Fria”. O escritor lembra de fala de personagem do livro Los anos de la serpiente: “Vivir sin una revolución posible es la más atroz y triste de las derrotas”.

Múltiplas memórias

O debate foi promovido pelo Centro de Documentação e Memória (Cedem) da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Com mediação da jornalista Genira Chagas, teve participação, além de Ostornol, do professor Alberto Ággio, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da Unesp, campus de Franca, e do economista Sérgio Buarque. (Confira aqui a íntegra do debate, realizado na quarta-feira 12).

Assim, o Chile teve duas comissões da verdades, memoriais, centros de memória, julgamentos, mas a polarização se manteve. “Convivíamos com múltiplas memórias, que não necessariamente conversavam entre elas”, afirma o escritor. Um exemplo de como a questão ainda mexe com feridas profundas: no início do mês, o escritor Patricio Fernández renunciou ao cargo de coordenador da comissão encarregada de organizar as atividades que lembrarão o cinquentenário. Nomeado pelo presidente Gabriel Boric, foi acusado de “relativizar” o golpe.

Caminho do socialismo

O professor Ággio observou que Allende, eleito em 1970 após quatro tentativas, buscou chegar ao socialismo pela via eleitoral, “mantendo o Estado democrático chileno que existia na época, mantendo a liberdade, mantendo o pluralismo da sociedade chilena, mas mantendo um programa que era bastante radical de socialização dos meios de produção, a começar pela maior riqueza do pais, que era a exploração do cobre”. O que levou a diversos conflitos, “porque ia se mexer nas estruturas fundamentais da economia chilena, da organização social do Chile”. Gradativamente, de 1970 a 1973, esses conflitos se radicalizaram, até o ataque ao palácio de La Moneda, sede do governo, bombardeado por terra e por ar, levando ao suicídio de Allende.

Assim, prossegue, em certo não se pode dizer que o 11 de setembro foi uma surpresa. Mas o golpe foi “disruptivo”, levando o país ao tormento de uma longa ditadura. O estudioso observa que Allende foi eleito com 36% dos votos. “É preciso reconhecer que Allende é um presidente minoritário eleitoralmente. (…) Do ponto de vista da estratégia da chamada via chilena ao socialismo, era fundamental conquistar essa maioria eleitoral, que representasse uma maioria na sociedade chilena, ampliando o arco de alianças e de outras forças políticas, e isso não foi possível.”

Dificuldade de formar alianças

A Unidade Popular, que reunia forças de esquerda, como socialistas e comunistas, chegou ao poder em 1970. O Chile vivera a experiência conservadora de Jorge Alessandri em 1958 e a democracia-cristã de Eduardo Frei em 1964. ” As principais forças políticas do Chile têm seus projetos próprios, e se torna bastante difícil articular alianças dentro desses blocos. (…) Temos que levar em consideração que 1970 é resultado de toda uma década de efervescência política na América Latina.”

Debate promovido pelo Cedem-Unesp: era possível evitar o golpe?
(Foto: reprodução YouTube)

O professor da Unesp identifica Allende como um “revolucionário do ponto de vista ideológico”. Mas que adota o caminho da chamada “via chilena”, ou o equivalente a uma via democrática, pacífica, para o socialismo. “A UP foi uma construção muito difícil, os partidos não tinham a mesma visão”, afirma. Ággio, para quem é preciso superar certa visão nostálgica sobre o que o Chile “poderia ter sido” e a idealização em torno da figura do ex-presidente. Nesse sentido, ele é organizador que da coletânea 50 anos do Chile de Allende, uma leitura crítica (Paco Editorial).

Ruptura política

Já Sérgio Buarque, além de uma antiga tradição democrática, vinha de uma experiência reformista com Frei, incluindo reforma agrária e um início de processo de nacionalização do cobre. Por isso, dadas essas características, o grau de ruptura política chama atenção.

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Ele arrisca algumas hipóteses. “Em primeiro lugar, a Unidade Popular se deu num momento, num ambiente político mundial no qual a Guerra Fria estava em plena presença”, lembra, acrescentando que a questão cubana era vista com extrema preocupação pelos Estados Unidos, em relação à possível influência em outros países da América Latina. “A nacionalização do cobre enfrentou forte-resistência norte-americana, mas internamente encontrou apoio grande na sociedade.”

Relação “esgarçada”

Quando a crise econômica começou a se intensificar, em 1972 – em parte por políticas implementadas pelo próprio governo, outras por iniciativa externa americana de desestabilização –, ele acredita que ainda havia alguma possibilidade de negociação. Buarque lembra que quando ele chegou ao Chile, em 1971, ainda havia uma democracia pujante, “direita e esquerda discutindo teses, propostas”. Mas a relação foi se “esgarçando”, diz o economista, contando um episódio pessoal.

Uma vizinha era crítica ao governo, mas ambos mantinham boa relação. Depois, ela chegou a denunciá-lo, afirmando que o brasileiro recebia exilados e tinha até armas em casa. “Uma senhora que era democrática, que era minha amiga. Esse é um retrato (…) O quadro de deterioração, de esgarçamento político, era tal que não tinha chance de ninguém sentar à mesa e negociar alguma coisa.”


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