contradição

Argentina comemora 30 anos de democracia, mas ainda enfrenta repressão policial

Entre 1983 e 2013, forças de segurança mataram 4.011 pessoas; na última semana, greves de polícias deixaram oito mortos

Franco Alberto Vera/EFE

Greves de policiais, como a de Tucumán, têm provocado protestos, saques e mortes na Argentina

Buenos Aires – A Argentina completou ontem (10) 30 anos ininterruptos de democracia. Durante as três décadas em que o país foi governado por civis eleitos pelo voto popular, 4.011 pessoas foram assassinadas pela polícia no país, segundo relatório divulgado pela Coordenadora contra a Repressão Policial e Institucional (Correpi) na última semana de novembro.

As polícias de diferentes províncias também foram acusadas, às vésperas do aniversário da democracia, de uma tentativa de desestabilização do governo. Há uma semana, a polícia da província de Córdoba se auto-aquartelou em protesto por reajuste salarial, o que culminou em uma noite de saques a pequenos comércios e episódios de linchamento a supostos saqueadores. Um jovem de 20 anos morreu vítima de arma de fogo e dezenas de pessoas ficaram feridas. Nesta segunda-feira (9), a ministra de Segurança de Córdoba, Alejandra Monteoliva, e o chefe de polícia local, César Almada, renunciaram a seus cargos.

Entre os incidentes de Córdoba, que começaram na madrugada do dia 03/12, e esta terça-feira, policiais e familiares de integrantes das forças de segurança de 18 províncias realizaram protestos, com diferentes níveis de intensidade, por reajustes salariais.Na manhã de hoje (11), a maioria das polícias estaduais já havia chegado a um acordo com os governos. A imprensa local fala de entre nove e 11 mortos em todo o país, mas ainda não há dados oficiais sobre a quantidade de vítimas.

Em ato pelo 30º aniversário da democracia na Argentina, a presidenta Cristina Kirchner fez críticas diretas aos protestos policiais e pediu à Justiça que “defenda os cidadãos e seus direitos democráticos.” A presidenta lembrou que em 30 anos na Argentina foi alcançada uma “reincorporação e reinserção das Forças Armadas aos processos democráticos” e que “é preciso fazer a mesma coisa com as polícias provinciais de uma vez por todas.” “Não significa não reconhecer direitos, mas condenar sem dúvidas a extorsão a uma sociedade por parte de quem porta armas para defendê-la e não para atacá-la”, afirmou a chefe de Estado.

O chefe de gabinete de Cristina, Jorge Capitanich, afirmou em coletiva à imprensa na manhã de segunda-feira (9) que a Justiça deveria trabalhar com a hipótese de desestabilização para a investigação sobre a relação entre as greves e os saques. Capitanich disse que nas medidas de força “há uma intencionalidade política para provocar uma caricatura ruim de uma ditadura que foi genocida e atentou contra os direitos humanos, gerou mortos e desaparecidos na Argentina.” Na mesma linha, o secretário de Segurança da Nação, Sergio Berni, em entrevista à Radio 10, chamou os protestos de “extorsão policial ao poder político quando a democracia completa 30 anos.”

O ministro de Justiça e Direitos Humanos, Julio Alak, afirmou também em coletiva de imprensa na tarde de segunda que a pasta que comanda tem provas de que os saques a comércios durante os protestos de policiais “não são espontâneos” e que “acontecem de forma simultânea à medida de força que vai contra a lei.” Membros de forças de segurança pública não têm direito à greve ou à sindicalização.

Segurança interior

A Lei de Segurança Interior da Argentina, vigente desde 1992, separa as atividades de defesa das de policiamento interno e, na prática, transfere integralmente as tarefas das forças de segurança à esfera civil. A polícia, na Argentina, não é militar.

“A questão não está na militarização ou na formação, mas na função social dessas forças, que é reprimir. Há 10 anos, temos um governo que levanta a bandeira dos direitos humanos e é responsável por 61% das mortes em mãos de forças policias na democracia”, aponta Lucía Sánchez Vilar, da Correpi, em entrevista ao Opera Mundi. “Hoje, a polícia tem uma orientação voltada aos direitos humanos, mas a verdade é que, quando tem que matar um jovem em um bairro pobre, não recita os direitos das crianças. Aperta o gatilho e mata.”

O arquivo de casos que a Correpi publica e atualiza todos os anos é feito a partir da pesquisa em jornais de todo o país, de intercâmbios com organizações de diferentes províncias (estados) e do contato direto com familiares de vítimas. Em 1996, quando a Coordenadora publicou a primeira versão, contabilizava 262 mortes em mãos de forças de segurança desde 1983.

Kirchnerismo e repressão policial

A Correpi esclarece que a informação sobre os anos 1980, durante o governo de Raúl Alfonsín (1983-1989) é escassa e deficiente. Mesmo assim, a organização registra 238 mortes no período, o que equivale a 6% do total. Já no governo de Carlos Menem (1989-1999), marcado por fortes protestos na segunda metade da década, responde a 15% do total de mortos pela polícia, com 610 execuções registradas.

A década em que a Argentina foi governada por Néstor Kirchner (2003-2007) e por sua sucessora e atual presidente Cristina Kirchner apresenta o maior número de assassinatos em mãos de forças de segurança do Estado. Entre 2003 e 2013, 2.448 pessoas perderam a vida em situações de repressão policial. O governo de Fernando de la Rúa (1999-2001), que deixou a Casa Rosada em um helicóptero enquanto milhares de pessoas tomavam as ruas em protesto quando o país entrou em default, foi responsável pela morte de 486 pessoas, 39 delas entre 19 e 20 de dezembro de 2001, durante a repressão às manifestações.

Desde 1995, 69 pessoas foram mortas por motivos políticos ou durante protestos. O governo de Cristina Kirchner fica em segundo lugar, com 18 casos, atrás apenas de De la Rúa. “Diferente de outros governos, a política repressiva atual vem aliada a uma política de construção de consenso e propaganda sobre direitos humanos que oculta a repressão”, avalia Lucía.

Jovens são maioria

Um dos casos emblemáticos da truculência policial é o de Walter Bulacio, que foi detido junto a outros 72 jovens na entrada do show de uma das bandas de rock mais populares da Argentina, Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota. Bulacio tinha 17 anos e morreu em 26 de abril de 1991, uma semana depois de ter sofrido torturas na delegacia a que foi levado àquela noite em que não conseguiu entrar ao show de rock.

Em novembro de 2013, 22 anos depois de seu assassinato, o delegado responsável pela detenção de Walter foi condenado por “privação ilegal de liberdade” a três anos de prisão com suspensão condicional da pena, o que significa que não deve enfrentar o regime fechado.

O caso de Walter está entre os 39% das mortes que aconteceram quando a vítima estava sob custódia do Estado – em delegacias, prisões ou detidas por forças policiais. Os casos de “gatilho fácil”, execução por parte de agentes das forças de segurança, somam 46% do total de vítimas da democracia argentina, que são jovens, em sua maioria. Segundo os números do relatório, 47% dos casos relevados são de pessoas que tinham entre 15 e 25 anos quando foram assassinadas.

Braian Hernández é um dos adolescentes que perdeu a vida em um caso de gatilho fácil. Na madrugada de 19 de dezembro de 2012, aos 14 anos, foi baleado na nuca, dentro de um automóvel, quando tentava evitar uma blitz policial na cidade de Neuquen, capital do estado homônimo no sul argentino. No dia 3 de dezembro de 2013, o policial Claudio Salas, que disparou a arma que matou Braian, foi condenado à prisão perpétua por homicídio agravado pelo fato de pertencer à polícia. Gustavo Gutiérrez, motorista do carro onde viajava Braian, foi assassinado com cinco tiros quatro dias antes da sentença, depois de prestar declaração à Justiça.

A província de Buenos Aires, a maior do país, concentra 46% dos casos de assassinatos por membros das forças de segurança, no topo da lista. No entanto, o relatório da Correpi revela que Santa Fé, com 12,32% dos casos, fica em primeiro lugar quando se considera a proporção entre a população total e o número de vítimas. Em seguida, aparece Tierra del Fuego, no extremo sul, e Buenos Aires cai para o terceiro posto.

Sem levar em conta os números da Polícia Metropolitana da Cidade de Buenos Aires, que está nas ruas desde fevereiro de 2010 na capital argentina, as polícias provinciais – que dependem dos governos dos estados – são responsáveis por 57% das vítimas nos 30 anos de democracia na Argentina. Os serviços penitenciários aparecem em segundo lugar, como responsáveis por 26% das mortes, seguidos pela Polícia Federal, que atua principalmente na capital e foi o algoz em 10% dos casos, entre eles o de Walter Bulacio.

“A polícia tem uma função social, sua natureza é reprimir. Sinceramente, não sei como poderia ser uma polícia para a democracia. Mas não acreditamos que reformas na instituição policial possam solucionar algo, mas sim a organização e a luta de quem sofre violência policial todos os dias”, afirma Lucía. “Se houve alguma mudança, se há condenados, é pelo custo político que a mobilização gerou. E se persistirmos, algum dia vai haver um custo político ainda maior em matar um jovem, como hoje há em matar um militante, por nossa história, pelos 30 mil desaparecidos. É preciso gerar esse custo político.”

Leia também

Últimas notícias