Frágil democracia

Com a Comissão de Anistia, o Estado brasileiro volta a pedir desculpas por perseguições

Segundo presidenta do colegiado, data da retomada foi pensada para garantir protagonismo às vítimas da ditadura: “A voz é nossa”

Reprodução/YouTube
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Eneá: 'Resistimos e sobrevivemos. Voltou a ser uma comissão de Estado'

São Paulo – Quatro processos integraram a pauta da primeira sessão de 2023 da Comissão de Anistia, nesta quinta-feira (30). E a primeira também, segundo o colegiado, “após anos de descaracterização” pelo governo anterior, que incluiu apoiadores da ditadura. Com isso, pedidos de anistia e de reparação foram sistematicamente negados.

“Resistimos e sobrevivemos”, afirmou a presidenta da comissão, a professora de Direito Eneá de Stutz e Almeida, no início da sessão. “Voltou a ser uma comissão de Estado”, acrescentou. Segundo ela, a data de hoje, às vésperas do aniversário do golpe de 1964, foi pensada para “marcar o protagonismo” das vítimas de crimes cometidos por agentes do Estado brasileiro. “A voz é nossa.” A sessão integra a Semana do Nunca Mais, promovida pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.

Não pode haver silêncio

“Nenhuma nação se ergue sem olhar para suas fraturas e repará-las”, afirmou o ministro Sílvio Almeida. Ele acrescentou que tratar dos crimes da ditadura não corresponde a repudiar as Forças Armadas. Mas é preciso dar passos adiante, “e isso não se dará silenciando sobre esse período”.

Assim, o ministro acrescentou que a democracia não chegou para todos os brasileiros. Está ausente, por exemplo, na periferia. “Pelo menos desde 1988 os Racionais MCs e outros têm dito isso para nós. A redemocratização não alcançou parcelas expressivas da sociedade.”

Primeiro julgamento

O primeiro caso analisado hoje foi do jornalista Romario Cezar Schettino. Sequestrado em 1973 e torturado, ele chegou a ter seu pedido aprovado pela Comissão de Anistia, mas a concessão de anistia nunca foi oficializada. A relatora, Rita Sipahi, votou pelo deferimento. O autor do pedido foi submetido a cirurgia exatamente hoje, para retirada de um edema cerebral. Por isso, seu caso foi incluído na pauta com urgência. Às 11h55 de hoje, a presidenta da comissão retomou procedimento que havia sido abandonado na gestão anterior e pediu desculpas, em nome do Estado brasileiro, pela perseguição sofrida.

Primeira sessão de 2023 da Comissão de Anistia: país não pode silenciar se quiser superar esse período, afirma ministro (Reprodução/YouTube)

A retomada das sessões teve mais três processos julgados hoje.

  • Claudia de Arruda Campos – ex-militante do grupo Ação Popular, teve pedido negado em 2019. Durante a ditadura, foi presa no Dops
  • José Pedro da Silva – ex-sindicalista (vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, na região metropolitana de São Paulo), 80 anos, foi perseguido por sua atuação, demitido e preso. A anistia chegou a ser concedida pela comissão em 2018, mas foi indeferida pelo Ministério da Justiça
  • Ivan Valente – atual deputado (Psol-SP), chegou a ter seu pedido negado, apesar de ter sido preso e torturado na ditadura. Professor da rede pública, perdeu o emprego e foi para a clandestinidade. Depois, foi impedido de receber o diploma de Engenharia – que ele fez questão de exibir na sessão de hoje, ao ser declarado anistiado

Cultura política autoritária

Integrante da comissão, Ana Maria Lima de Oliveira afirmou que o Brasil tem uma democracia jovem e não consolidada. “Nossa cultura política é autoritária, antidemocrática. Precisamos de cuidado e muita vigilância. Sem educação, estamos fadados à repetição de fatos como os do 8 de janeiro.” Nesse sentido, ela defendeu a criação de espaços de memória, como em outros países.

“É imprescindível que torturadores e assassinos da ditadura sejam responsabilizados. Já há duas condenações internacionais nesse sentido, e lamentavelmente nosso Judiciário ainda resiste a essas medidas de justiça.” As condenações a que ela se refere foram da Corte Interamericana de Direitos Humanos, por não investigar e punir crimes.

Por sua vez, o presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, André Carneiro Leão, reforçou esse ponto de vista. “O Brasil precisa concluir sua justiça de transição. Não será concluída se não avançarmos no processo de responsabilização e de depuração das instituições”, afirmou. “Permaneceremos teimosas e teimosos em relação a essa questão”, acrescentou a presidenta da Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Câmara, deputada Luizianne Lins (PT-CE).

“Você mereceu ser perseguido”

Eneá adiantou que o colegiado pretende rever, nos próximos anos, milhares de processos que foram julgados e negados pela comissão anterior. “Temos uma estimativa de que pode ser de 4 mil até 8 a 9 mil processos”, declarou à Agência Brasil, apontando estratégia deliberada do governo passado.

“Nesse período, a Comissão de Anistia que existiu era negacionista. Ela negava o golpe, negava a ditadura, negava a perseguição política e, claro, o resultado tinha que ser negar a anistia política. (…) “A pessoa entrou com requerimento para ter um acolhimento do Estado e ter a assunção, pelo Estado, do erro de ter sido perseguido, e recebeu na cara um ‘bem feito, você mereceu ter sido perseguido’.”