Cineasta faz campanha para concluir filme sobre ‘a escravidão do quarto de empregada’
Financiamento coletivo termina neste sábado (11). Na voz das trabalhadoras domésticas, documentário revela relação com a senzala. “Ninguém melhor do que elas para contar essa história”, diz Karoline Maia
Publicado 08/07/2020 - 16h39
![filme aqui nao entra luz Reprodução](https://www.redebrasilatual.com.br/wp-content/uploads/2020/07/filme-quarto-de-empregada-.jpg)
São Paulo – “A história de empregada doméstica não é bonita de se contar não”, tentou advertir Marcelina, moradora de Salvador, à cineasta e fotógrafa Karoline Maia. Palavra de trabalhadora doméstica. Karol, como é chamada, rodava o país para gravar seu primeiro longa-metragem. Encontrava raízes e reunia um Brasil contemporâneo que teima em manter seu passado escravocrata.
Na adolescência, Karol sonhava em ser escritora. No seu trabalho de cineasta, e já formada em Rádio e TV, foi encontrar na exatidão das imagens uma forma de transpor um incômodo de anos. Queria exibir sua investigação histórica sobre a relação da antiga senzala com o quarto de empregada dos dias atuais.
O elo entre o Brasil dos tempos coloniais e o “moderno” apareceu ainda em sua infância, ao acompanhar a mãe, a também trabalhadora doméstica Miriam Mendes, às “casas das patroas” próximas ao Jardim Helena, na zona leste de São Paulo. Por causa disso, em parte, quando dona Marcelina perguntou à equipe do filme o porquê de fazê-lo e, mais ainda, “se tinham esperança de que algo havia mudado”, Karol não hesitou ao confirmar sua falta de expectativa.
Mas é também verdade que tamanha certeza vinha acompanhada de memórias de dores e racismo. Karol é uma mulher negra. E confirmou no preconceito de uma ex-chefe o que os livros de História ainda faltam dizer. “Ela me mandou dormir no quarto de empregada, a senzala, que tinha dentro da casa dela”, contou a cineasta à trabalhadora, compartilhando dores.
Já na entrevista com Marcelina, em meados de 2019, Karol tinha em mãos um roteiro “amadurecido” há pelo menos três anos. É uma longa pesquisa teórica desenvolvida pela historiadora e educadora em questões étnico-raciais Suzane Jardim. Mas a cineasta de fato sentiu que “toda a história fazia sentido, que ela se amarrava” quando teve a oportunidade de conversar com muitas mulheres, todas trabalhadoras domésticas.
Aqui não entra luz
Pelo menos seis delas darão as vozes e as caras a todo esse material histórico em seu primeiro longa, o Aqui não entra Luz. E a ajudar a compreender que “não existe o espaço em si, o espaço pelo espaço. Se os espaços significam o que eles significam é porque eles foram ocupados por um certo tipo de pessoa. E quem são essas pessoas? São pessoas negras”, destaca Karol à RBA.
No país onde a cor da pele importa, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) calculou, em 2018, que 6,2 milhões de pessoas tinham como ocupação o serviço doméstico remunerado. Desse total, 92%, o equivalente a 5,7 milhões, eram mulheres. E mais da metade – 3,9 milhões – negras.
O último dado do IBGE, de maio, mostra que a categoria também sofreu com a pandemia. No período de um ano, o número de trabalhadores domésticos caiu de 6,2 milhões para 5 milhões. A imensa maioria, 3,6 milhões, sem carteira assinada. E com rendimento médio abaixo de um salário mínimo.
Até 2018, era uma atividade que vinha em recuo desde 1995. Mas ao longo de todo esse período o que jamais se modificou era o fato de que mulheres negras continuam a ser a maioria entre as trabalhadoras domésticas.
O mesmo enredo
Ao percorrer, no ano passado, São Paulo, Maranhão, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais – eixos de movimentos migratórios forçados –, a cineasta reconhecia que quarto de empregada e senzala se mantêm como alegorias de um país que segue racista. Mudava o local, não o enredo. Na individualidade de cada trabalhadora, havia ainda horrores e cicatrizes desse passado.
“As histórias se repetem. Existe um padrão e esse padrão consiste em muitas mulheres que começaram a trabalhar ainda criança e, nessa experiência, não recebiam salário, eram abusadas e deixaram de estudar”, comenta Karol. “Muitas famílias mandavam ao trabalho porque não tinha o que comer em casa. Até na expectativa de que assim tivessem também uma educação melhor do que poderiam dar. E elas foram trabalhar na casa de pessoas que definitivamente não respeitavam nenhum direito. Se não respeitam agora com a PEC, imagina naquela época.”
A PEC à qual ela se refere é a proposta de emenda à Constituição aprovada no Congresso em abril de 2013, durante o governo de Dilma Rousseff (PT). Tornou-se a Emenda Constitucional 72, garantindo aos trabalhadores domésticos os direitos dos demais.
Mulher a serviço
O desafio era fazer a relação entre o quarto da empregada doméstica do Brasil da dita Constituição Cidadã, “muitas vezes sem janela e sem ventilação, onde, consequentemente, não entra luz”, com as senzalas de um Brasil colonial, em nada preservadas ou mantidas como espaços críticos à escravidão.
“Essa foi uma dificuldade, sim. Nós fomos a muitos lugares que a senzala tinha virado banheiro, cozinha, escritório, e eu entrei em desespero. ‘Meu Deus, como eu vou fazer um filme disso, se não preservaram?'”, descreve a cineasta. “Então a Suzane começou a considerar na pesquisa dela que senzala era o lugar onde escravizado dormia. Nessa dinâmica, a gente conseguiu abranger um pouco mais esse olhar, de não esperar encontrar a senzala do Projac (o local dos cenários da TV Globo), mas encontrar outros formatos de senzalas”, explica.
As imagens capturadas revelaram o quanto de colonial a arquitetura contemporânea ainda tem. Principalmente quando a escada por onde passavam as pessoas escravizadas davam acesso direto à porta de serviço. Não muito diferente da estrutura de prédios, casas e condomínios visitados pelo filme, que destinavam o elevador, a portaria e o adendo fechado ao lado da cozinha, a quem iria servi-los. “Tudo confirmava a nossa tese que o quarto de empregada é uma herança da senzala”, ressalta Karol.
Pseudo-afeto
Mas de frente aos rostos do trabalho doméstico, a cineasta também viu uma relação de “afeto”. Ou “pseudo-afeto”, termo que ela considera ser mais próximo da realidade. E da complexidade que aproxima as empregadas domésticas dos patrões, de modo diferente de qualquer outra dinâmica de trabalho.
“Todas as histórias têm um pouco disso, mas também tem o ‘ponha-se no seu lugar’. Porque por mais que a família possa dizer ‘ela é quase como se fosse da família’, mas ‘usa essa loucinha separada, esse é o seu copo, esse é o nosso'”, exemplifica, prosseguindo: “‘Usa aquele banheiro ali, não usa o nosso aqui dentro de casa não. Come na cozinha, não come na mesa com a gente’. A família sabe qual é o lugar onde eles querem que a empregada esteja”.
Sem memória e sem incentivo
A cineasta chegou a 2020 com um filme pronto. Mas depois de visitar um passado e notar que este é um país pouco interessado na preservação de memórias críticas a ele, encontrou também um Brasil alheio ao incentivo à cultura.
Até então, todo o processo de gravações e viagens, além do início da pós-produção, foi bancado com recursos do edital Rumos 2017-2018, do Itaú Cultural, que selecionou o projeto. Mas faltavam investimentos para montagem, tratamento de cor e som, arte final, criação de trilha sonora, identidade visual, produção de legendas e distribuição.
A saída foi lançar uma campanha de financiamento coletivo no site da Benfeitoria. As doações on-line se encerram neste sábado (11). O objetivo é garantir a finalização do longa, com previsão de lançamento para 2021.
Karol ressalta que não é a primeira cineasta negra a contar a história do trabalho doméstico em um documentário. Lembra dos filmes Mucamas, produzido em 2015 pelo Coletivo Nós, Madalena, e Filhas de Lavadeiras, de 2019, assinado por Edileuza Penha de Souza. Sua proposta, contudo, é “colaborar mais um pouco” nesse processo de registro, ao lado de outras mulheres da equipe e suas colegas da produtora audiovisual Pujança – coletivo formado por ela e pelas fotógrafas Camila Izidio e Carol Rocha, também negras.
“Quando contamos essa história juntas, a gente ressignifica contar a história de pessoas negras, porque não é mais uma pessoa branca contando, agora somos nós, mulheres, mulheres negras, que estão tomando a linha de frente”, destaca. “Tudo isso é muito importante para eu inclusive continuar acreditando nesse filme, porque não é facil fazê-lo. Ele é bastante dolorido para mim também”, revela Karol, sobre o que Marcelina já havia advertido.
“Fui começando a me enxergar no filme, eu mesma, Karoline Maia, filha de uma trabalhadora doméstica. E fiz a escolha de optar só por manter as domésticas no filme. Por isso que eu chamo elas de especialistas, porque ninguém melhor do que elas para contar essa história”, garante.
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Ferida aberta
São essas vozes que o Aqui não entra luz procura trazer à realidade o que seria difícil de contar até em ficção, mas é revelador da sociedade brasileira. Com um enredo que reconhece os direitos das domésticas apenas em 2015. Ou que leva a ter em uma trabalhadora do setor o primeiro óbito registrado em um Estado na pior crise sanitária da história. E tem, em plena pandemia, seu filho morto por negligência da patroa. Além de uma senhora que exercia seu trabalho como doméstica em condições análogas à escravidão.
“É uma ferida aberta, sem dúvida. Nas últimas semanas a gente está sendo bombardeado por várias notícias que só deixam mais claro que a gente precisa falar desse assunto e precisa tocar nessa ferida. Meu desejo é que o filme colabore para essa discussão. E que a gente pare de fugir desse assunto, que coloque ele na roda dos nossos amigos, famílias. E eu digo amigos e famílias brancas, porque as pessoas negras já estão discutindo isso há muito tempo”, destaca a cineasta.
Parte do dinheiro arrecadado será destinado a um fundo emergencial de apoio às trabalhadoras domésticas do documentário, que perderam o emprego ou tiveram a renda reduzida por conta da pandemia. A campanha chega nesta quarta-feira (8) com quase 90% da meta de R$ 130 mil batida.
Naquele 13 de junho, ao anunciar o financiamento coletivo em seu Instagram, Karol relatou “sentir medo, mas também esperança”. Agora, afirma perto da reta final ter “um pouco mais de fé nas pessoas”. Mas ainda faltam R$ 14 mil. Então lembra de cobrar daqueles, os brancos, que se empenham em divulgassem antirracistas. “Ser antirracista é também sobre colocar a mão bolso. A gente sabe quem é a maioria que tem dinheiro e quem é a minoria que não tem dinheiro no Brasil”, adverte.
“Às pessoas brancas, eu as convido a colocar a mão no bolso e apoiar projeto de pessoas negras.”
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