Crueldade

‘Em pleno século 21, ainda temos que fazer campanhas antirracistas’

Selma Dealdina, do Conaq, expõe a situação dos quilombolas frente à pandemia e a omissão do governo em protegê-los. Para Deborah Duprat, “o que lhes permite enfrentar isso é a força histórica e da ancestralidade”

José Cruz/EBC
José Cruz/EBC
Até está quinta, a Conaq já confirmava 353 casos da Covid-19 entre quilombolas e 56 mortes. Comunidades denunciam negligência do Estado

São Paulo – A parcela de brasileiros brancos que se choca com a imagem do negro norte-norte americano George Floyd tendo seu assassinato filmado, vítima da brutalidade policial, é a mesma que é indiferente à morte violenta de um jovem negro a cada 23 minutos no Brasil – segundo dados do Mapa da Violência. A constatação é da diretora-executiva da Oxfam Brasil, Katia Maia, ao lembrar que, em solo brasileiro, o racismo, além de estar institucionalizado, está naturalizado. “E isso se reflete na comunidade quilombola”, acrescenta.

A advertência abriu o debate virtual promovido pela organização, nesta quinta-feira (4), para tratar das desigualdades enfrentadas pelas comunidades quilombolas diante da pandemia do novo coronavírus. Com mais de 350 casos confirmados, a covid-19 avança nos territórios tradicionais, sem contar com qualquer política pública de saúde ou de assistência do Estado, como denunciam as comunidades. 

Só até esta quinta, o monitoramento autônomo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) já registrava a morte de 56 pessoas entre os descendentes de escravos. Ao menos 178 estão em monitoramento, além de haver quatro óbitos com suspeitas da doença, mas sem confirmação do diagnóstico. “A covid-19 veio para evidenciar o racismo que já existe e que é muito bem estruturado. E toda essa estrutura racista não ia mudar por causa da covid, pelo contrário”, contesta a secretária-executiva da Conaq, Selma Dealdina. 

“A preocupação não são corpos pretos que tombam a cada 23 minutos, que lotam o sistema carcerário, que estão em grande maioria em situação de rua. A preocupação não é com esse público e com esse povo”, acrescenta a assistente social e quilombola. “O racismo é tão cruel e tão bruto com os quilombolas, e os negros em geral, que a gente, em pleno século 21, ainda tem que falar e fazer campanhas antifascistas e antirracistas, porque a gente já não consegue respirar mais.” 

Insegurança alimentar

O boletim da Conaq indica que o Pará lidera o ranking de mais mortes por estado, com 18 vítimas entre quilombolas, seguido pelo Amapá, com 13 óbitos, e Pernambuco, com oito. As queixas de negligência dos governos locais se somam à falta de ações do poder público e, principalmente do governo Bolsonaro, como explica Selma. “Os quilombos existem a pouco tempo para o estado brasileiro, mesmo estando naquelas espaços há mais de 300 anos. Só a partir da Constituição que eles começaram a respeitar, e isso não está acontecendo”, lamenta.

A secretária-executiva do Conaq descreve que as comunidades quilombolas chegam nesse momento de pandemia em “total vulnerabilidade”. Selma lembra da extinção do Ministério de Desenvolvimento Agrário e dos espaços de conferências públicas para acompanhamento e cobranças de políticas e programas que foram desfeitos pelo governo Bolsonaro. 

Entre eles, cita, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), extinto no dia em que Bolsonaro assumiu a Presidência. Sem o Consea, considerado pela ONU fundamental para retirar o Brasil do Mapa da Fome, a situação de insegurança alimentar, especialmente entre a população negra, é ainda mais agravada, principalmente na pandemia. 

“Nós temos muitas comunidades que produzem (alimentos) e estão produzindo (…) vários quilombos estão entregando alimentação. É tão bonito quando a gente vê matérias como ‘MST entrega oito toneladas de alimentos’. Mas a gente tem que olhar para uma grande maioria, que está em vulnerabilidade e está passando fome”, alerta a quilombola. 

Resistência e ancestralidade

Vice-procuradora-geral da República de 2009 a 2013, Deborah Duprat – que até maio ocupava a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público – confirma que a pandemia vem intensificando um quadro que já era desigual. Para elam que conhece as consequências – ainda atuais – das perversidades históricas cometidas contra os negros,as comunidades quilombolas mantêm-se na mesma resistência que permitiu as fizeram lutar pelo seu território e garantissem o direito à terra, conforme proclamado com a Constituição de 1988. Essa resistência, define, é o que possibilita a sobrevivência em meio à crise econômica, social e sanitária, agora agravadas.

“A pandemia pega o país numa situação em que os grupos historicamente vulnerabilizados, marginalizados e violentados, estão numa situação, em termos de proteção estatal, frágeis. E o que lhes permite enfrentar isso é a força histórica e a ancestralidade. Vem do esforço pessoal e coletivo para enfrentar a pandemia, porque não contam com o aparato estatal”, destaca. 

A ex-procuradora defende a imediata derrubada da Emenda Constitucional (EC) 95, o chamado Teto de Gastos, que congelou investimentos públicos. De acordo com Deborah, debater a superação das estruturas excludentes passa pela inconstitucionalidade dessa medida. Além da retomada do papel provedor e cuidador do Estado e do pacto constitucional de 1988

“A noção de que funcionário público é parasita, e que o Estado é o local da incompetência e da balbúrdia, isso foi criado. Para enfrentar a desigualdade você tem que ter uma estrutura pública robusta, conferências nacionais. Porque as políticas são construídas a partir dos sujeitos implicados e não porque alguém idealiza uma política sem ouvir ninguém. Isso não existe. Por isso que a gente tem essa desfuncionalidade de um sujeito, que fala uma barbaridade, como o presidente da Fundação Palmares”, crítica a ex-procuradora. 

Fundação Palmares

Nesta semana, o jornal O Estado de S. Paulo divulgou uma conversa em que o presidente da instituição criada para promoção da cultura afro-brasileira, Sérgio Camargo, chama o movimento negro de “escória maldita”, além de outras ofensas que reproduzem o racismo. Com a gestão de Camargo, os quilombolas enfrentam ainda outros riscos. Reportagem da agência de jornalismo Alma Preta mostra que a Palmares certificou apenas cinco comunidades tradicionais neste ano. 

A Conaq e diversas frentes e movimentos repudiaram as ações do instituto e as declarações de seu presidente. A Coalização Negra por Direitos já entrou com um pedido no MP para abertura de investigação criminal contra Camargo. “Não tem como ficar nesse cargo uma pessoa que não acredita que existe racismo”, afirma Selma. 

Confira o debate na íntegra


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