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Filhos de lideranças rurais vivem ‘realidade sangrenta’ com aumento da violência no campo

Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), divulgados pela Repórter Brasil, mostram que 2021 foi o ano mais violento para o segmento desde 2016, com 68 casos de assassinatos, agressões, ameaças e estupros. Vulnerabilidade está diretamente associada às ameaças de despejo, grilagem e pistolagem, apontam especialistas

Reprodução/Repórter Brasil
Reprodução/Repórter Brasil
Há pouco mais de um mês, a violência no campo tirou a vida de uma criança, Jonathas Oliveira, de apenas 9 anos. Ele era filho do presidente da associação dos agricultores familiares do Engenho Roncadorzinho (PE)

São Paulo – O número de crianças e adolescentes vítimas da violência no campo, em 2021, atingiu o maior patamar em cinco anos. De acordo com análise inédita da Comissão Pastoral da Terra (CPT), publicada pela ONG Repórter Brasil, ao menos 68 casos de violência, o que inclui assassinatos, ameaças, agressões, tortura, estupro, contaminações por agrotóxicos e outros crimes foram registrados ao longo do ano passado. Em 2017, 19 menores de 18 anos foram vitimados. Um ano depois, 45 casos de violência foram registrados pela comissão. Entre 2019 e 2020, ao todo, a CPT constatou 22 e 38 vítimas, respectivamente. A violência contra crianças e adolescentes no ano passado só fica atrás de 2016, quando 127 casos foram apontados, e de 2013, que teve 97. 

À Repórter Brasil, o coordenador nacional da CPT, Carlos Lima, observa que os dados revelam uma “realidade sangrenta para crianças e jovens das áreas rurais”. O cenário, ainda segundo o especialista, indica o acirramento da violência no campo em que a vulnerabilidade dessa população está diretamente associada aos conflitos fundiários em comunidades sem-terra ou quilombolas. “No cotidiano dessas famílias, essas crianças também sofrem violências por conta das ameaças constantes, seja por um despejo, por uma ação da grilagem, da pistolagem; elas estão sujeitas a tudo isso”, explica Lima.

Um relatório publicado pela ONG Global Witness, em 2021, já havia chamado a atenção para a alta nos índices de violência no campo. O Brasil ocupa hoje, segundo a entidade, o quarto lugar no ranking dos países com mais assassinatos de lideranças ambientais. Um dado semelhante ao Atlas da Violência no Campo no Brasil, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). De acordo com o levantamento, entre 2007 e 2017 os homicídios no campo subiram 75%, taxa superior à média das mortes registradas nos centros urbanos, cujo crescimento foi de 40%.

Violência é sistêmica e pode se agravar

Uma da organizadoras do Atlas, Janine Mello, destaca à reportagem que a violência no campo é sistêmica e pode se agravar caso o Projeto de Lei (PL) 191, que pretende liberar a mineração em terras indígenas, seja sancionado. A pedido do governo de Jair Bolsonaro (PL), a proposta teve requerimento de urgência aprovado, na semana passada, pela Câmara dos Deputados, e pode agora ser votada diretamente pelo plenário da Casa. “As evidências mostram um cenário de piora devido a um conjunto de fatores: aumento do armamento, desmonte de políticas públicas que poderiam contribuir para não acirrar os conflitos fundiários e a possível liberação de terras indígenas para mineração, que contribui para acirrar o potencial violento nessas regiões”, adverte. 

Há pouco mais de um mês, a violência no campo tirou a vida de uma criança, Jonathas Oliveira, de apenas 9 anos. Ele era filho de Geovane da Silva Santos, presidente da associação dos agricultores familiares do Engenho Roncadorzinho, município pernambucano de Barreiros, na Zona da Mata Sul do estado. Jonathas foi morto a tiros durante ataque à residência de seu pai, no dia 10 de fevereiro. Homens encapuzados e fortemente armados invadiram a casa e atiraram no trabalhador rural, que foi atingido de raspão no ombro. Na sequência, eles dispararam contra o filho de Geovane, que tentava se esconder com a mãe embaixo de uma cama.

Vidas interrompidas

Ainda não se sabe a causa do crime, mas os conflitos agrários são uma rotina na região, palco de uma tensão que se arrasta há anos. O Engenho do Roncadorzinho fica em uma área que abrigava a usina de açúcar Santo André, que decretou falência judicial há décadas. Apenas os ex-empregados permaneceram, com suas lavouras e criações, aguardando também por suas indenizações trabalhistas. Mas a comunidade vive com receio de que empresa Agropecuária Javari Ltda., que arrendou as terras, tome suas propriedades e acabe com seu trabalho. 

Até o momento, a Polícia Civil de Pernambuco argumenta que “o trabalho investigativo prossegue até a conclusão do inquérito policial com empenho para a elucidação de todos os fatos relacionados”. De acordo com a Repórter Brasil, dois suspeitos foram presos pelo assassinato de Jonathas. Um adolescente também foi detido pela participação no crime e na tentativa de homicídio do líder rural. No Pará, a polícia também investiga o assassinato da jovem Joane Nunes Lisboa, de 17 anos. Ela foi encontrada morta, no início de janeiro, junto com a mãe Márcia Nunes Lisboa e o padrasto José Gomes, na casa onde viviam em São Félix do Xingu, uma área também alvo de disputa. 

José Gomes era um ambientalista e responsável por um projeto de criação de tartarugas. E Joane tomava gosto pela causa. “Ela seria a sucessora do padrasto e eu acredito que isso tenha sido ponto fundamental para a execução”, contou uma fonte.