cenário de guerra

Preparar-se para mais tragédias? A tempestade se repete; os erros não podem mais

Debate sobre especulação imobiliária e descaso do poder público não pode tirar o foco do tamanho do ciclone que atingiu o litoral norte de São Paulo no fim de semana

Rovena Rosa / Agência Brasil
Rovena Rosa / Agência Brasil
Vila Baiana, nome correto do que a mídia chama de Vila Sahy, é onde ocorreram os eventos mais graves de deslizamentos e mais mortes

Frequento Boiçucanga há 32 anos, primeiro com uma casa no morro da Praia Brava, na subida da serra para Maresias, e agora em outra casa na vila. Aprendi que no verão sempre há uma tempestade destruidora, difícil é saber quando ela vem. Em um ano veio entre Natal e Réveillon, o rio transbordou na ponte sobre a Santos-Rio. Noutro ano foi em março, quando uma mulher morreu na Rodovia dos Imigrantes. Em outra, uma menina foi arrastada de uma casa no pé da serra.

Certa vez, vi a defesa civil percorrendo a praia avisando sobre a chegada de chuvas com ventos de 90 km/h, que chegou seis horas depois, o que permitiu aos pescadores se protegerem. Certa ocasião, o rio arrastou um contêiner de obra na estrada Beira Rio até o mar, onde ficou à deriva por vários dias.

Os nomes das vilas vêm dos indígenas e Camburi, vila ao lado, significa “rio que camba”, porque reza a lenda que a cada seis anos a tempestade faz o rio mudar passando de um lado para outro entre Camburizinho e Camburi. Nas montanhas e também no mar é comum aparecerem grandes árvores deslizadas em chuvas e ventos localizados.

É rotina favelas serem formadas após uma grande obra de condomínio, de pousada ou estrada. As empreiteiras buscam mão de obra principalmente em Minas Gerais e ao fim da obra os trabalhadores vão ficando por ali mesmo, ocupam terrenos, constroem como dá. Formam famílias e muitos passam a trabalhar nessas mesmas obras com limpeza, domésticos, vigilância etc.

É o PIB gerando as favelas e alimentando a vida dos locais

A mais expressiva é a comunidade de Juquehy, mas Tropicanga também se destaca. Assim vi a Vila Baiana – o nome correto do que a mídia chama de Vila Sahy, onde ocorreram os eventos mais graves de deslizamentos e mortes, mais o Morro do Esquimó, em Juquehy.

O litoral norte de São Paulo é frequentado por boa parte do PIB do estado, mas nunca teve investimentos, tanto na rodovia quanto nas comunidades. Nesses dias, o noticiário é abundante sobre propostas e ações judiciais que não foram cumpridas. Chega ao ponto de a Ilhabela ter sete praias com bandeira vermelha da Cetesb. Em outras palavras, o PIB se banha em coliformes fecais. 

Dois dias antes da tragédia os navegadores e as marinas sabiam de um fenômeno gigantesco e nada foi feito. O resultado é muito mais catastrófico do que aparece na mídia. Há enormes deslizamentos em mais de 20 quilômetros. Destaque-se que o ciclone levou 640 mm de água e ventos de 140 km/h, os rios que vêm da serra transbordam violentamente.

Na rua de casa, com 150 metros de extensão, foram nove carrões com perda total, apesar das tentativas de avisá-los do que estava ocorrendo. Os da família conseguimos levar a tempo para áreas mais altas. As pessoas simplesmente não sabiam o que fazer. Depois da tragédia uma imensa corrente de solidariedade com doações e voluntariado se formou no cenário de guerra.

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Muito mais do que a especulação imobiliária e o descaso de governos – Lula pode dar uma guinada nisso –, a atenção maior deve ser para o tamanho desse ciclone, que pode se repetir, e o que é necessário fazer – apitos, sirenes, placas com alertas e remoções de pessoas e todo tipo de prevenção para salvar pessoas antes e bens depois.

É preciso superar a vergonha de admitir que o local alaga. Basta ver como o poder público atua no Caribe e nos EUA diante da iminência de catástrofes. Só não vale agredir jornalistas que documentavam o alagamento de um condomínio de luxo em Maresias. Nem vender um litro de água a 90 paus.