Dito e Feito

Será possível ler um relato mais ou menos complexo?

Acho que sempre foi assim, mas hoje as coisas aparecem mais: o que se repete é o que vira verdade. Tentativas de discutir os assuntos com profundidade viraram coisa de quem 'só complica'

CC0 Wikimedia / pxhere

Acho que sempre foi assim, mas hoje as coisas aparecem mais. Ações políticas relativamente complexas são resumidas em uma frase curta, talvez uma manchete. E é o que se repete, o que vira verdade. Acho que esta é uma das razões pelas quais os “intelectuais” são considerados habitantes da torre de marfim. Eles “complicam” tudo.

Vamos a dois casos. Antes (à moda de Nelson Rodrigues), comentemos outros dois. Pode ser que Bolsonaro tenha ganhado a eleição por causa da famosa mamadeira de piroca. Mas pode ser que tenha sido por frases como “chega disso daí”, “vamos mudar isso daí”. O que seja “isso daí” ninguém sabe. Mas funciona, e exatamente por isso.

Outro caso: “velha política / toma lá dá cá”: em qualquer mesa redonda, mesmo que os participantes apoiem o homem, “toma lá dá cá” é desenrolado, transforma-se em negociação política legítima, emendas viram previsões constitucionais, demandas tornam-se participação no governo, tenta-se separar uma simples troca de voto por grana da implementação de políticas locais legítimas, que os deputados, afinal, precisam levar adiante e que às vezes são a única coisa concreta que chega aos municípios (afinal é onde as pessoas moram) etc.

Passada a mesa redonda, tudo volta ao normal: político rouba, toma lá dá cá, é dando que se recebe, velha política etc. É neste ambiente que a Terra volta a ser plana.

E, curioso, a “culpa” não é de quem reduz tudo ao slogan, mas de quem mostra que a coisa é mais complicada do que ir lá e fazer, é questão de vontade política. Trata-se de um pensamento autoritário, que não leva em conta a diversidade de interesses. Olavo de Carvalho faz isso quando fala das universidades, por exemplo: lugares de maconha e surubas.

Mas eu queria comentar outro caso (antes, ainda outro: os defensores da ditadura – e mesmo das torturas – alegam que se tratava de uma guerra, coisa da época, que tem que ser levada em conta etc. Mas o que vale para justificar essas ações não vale para Battisti: desconsidera-se que, na década de 70, era uma “guerra” que havia na Itália; falta lógica, falta dar o mesmo peso etc.).

Voltemos ao assunto de que eu ia tratar. Assim que Temer foi solto, depois de uma prisão preventiva, logo se começou a repetir uma velha cantilena: a polícia prende e a justiça solta. É um velho slogan, mais falso que nota de três, para apelar a uma expressão antiga. E que consagra a polícia (especialmente quando erra, aliás) e maldiz a justiça (as pessoas gostam de ver outras presas, gozam com isso).

Pois bem. O caso Temer é uma demonstração de que não, a história não obedeceu ao “polícia prende, justiça solta”. Foi quase o contrário: o ministério público pediu a prisão; um juiz a decretou; a polícia o prendeu; depois, um desembargador o soltou.

O resumo “polícia prende justiça solta” comporta pelo menos dois erros: é verdade que foi a polícia que prendeu, mas por ordem de um juiz (que é da justiça, não da polícia, pelo menos às vezes). E quem pediu a prisão foi o ministério público, que também não é polícia.

O que se teria que discutir – mas por que complicar?, dirão – é se o ministério público pediu a prisão com bons fundamentos. Se o juiz a concedeu seguindo as leis. Se o desembargador o soltou também seguindo as leis, embora dando outra interpretação cabível; e, principalmente, qual das duas decisões da Justiça parece mais justa / legal etc. etc.

(Anote-se que às vezes nem os juízes conseguem ler uma história com dois lados).

Aliás, a única instância valorizada nesse resumo foi a que agiu de maneira mais estranha, talvez errada: por que a PF faz estas operações de guerra, com muitos carros, muitos agentes, uns camuflados, com armamento pesado, para, por exemplo, prender Temer (ou para acompanhar a chegada de Lula ao velório do neto)? Por acaso é um programa do Datena? Ou um filme de guerra?

Para concluir, outro caso: Alexandre Garcia postou o seguinte texto, lá pelos idos do carnaval: “Fico pensando na perplexidade dos foliões, entre dois estímulos: primeiro, distribuem camisinhas; depois, alertam que assédio é crime”.

Quer dizer que ele acha que, se o cara está munido de uma camisinha, então pode assediar, quem sabe estuprar? (“Não te estupro porque estou sem camisinha”, parafraseando Bolsonaro).

Pois foi este leitor que infestou a Globo durante décadas!