entrevista

Andar de novo: muito além do exoesqueleto

Coordenadora da equipe internacional de pesquisadores, a médica brasileira Lumy Sawaki destaca que a medicina de reabilitação já pode se beneficiar de conhecimento produzido pelo Andar de Novo

Mark Cornelison/ Lexington Herald-Leader

 

Ao longo dos últimos 18 meses, a médica Lumy Sawaki teve de se ausentar de suas aulas e estudos em reabilitação no Centro de Pesquisas em Lesões Cerebrais e Medulares da Universidade do Kentucky, nos Estados Unidos, para vir a São Paulo. Mais especificamente à Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), onde coordenou o trabalho de médicos em testes e avaliações com oito pacientes da instituição incluídos no projeto Andar de Novo.

Foi nesse ano e meio que os participantes, todos com paralisia, puderam voltar a ter a sensação tátil dos passos dados com ajuda da pele artificial que emite impulsos vibratórios mecânicos na região do corpo em que têm sensibilidade, como antebraço, por exemplo, e que seus cérebros aprenderam novamente a sentir pernas e pés. Um deles, o paratleta paulista Juliano Pinto, de 29 anos, teve condições de dar o chute simbólico na abertura da Copa.

Uma das maiores autoridades mundiais em Medicina da Reabilitação, a brasileira graduada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em 1991 logo começou sua carreira internacional. Em 1995, após a residência na área no Brasil, ela ganhou uma bolsa de estudos do Ministério da Educação do governo do Japão, onde obteve o doutorado em Neurofisiologia Clínica, em 1999, pela Universidade de Kobe.

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Naquele mesmo ano ganhou outra bolsa, concedida pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, da sigla em inglês), agência do Departamento de Saúde dos Estados Unidos, e a partir de então passou a ter seu trabalho reconhecido por prêmios e incentivos de universidades e entidades de prestígio, por seus estudos em reabilitação de pessoas que ficaram com sequelas de acidente vascular cerebral (AVC) e de outras lesões cerebrais e medulares.

Além de integrar o consórcio internacional Andar de Novo, Lumy é uma das fundadoras de um grupo de estudos sobre Lesão Neural e Epilepsia do NIH. Ela se dedica especialmente ao estudo de novas estratégias para reabilitação motora pós-AVC e lesão cerebral e medular.

Como é a sua participação no projeto Andar de Novo?
Minhas responsabilidades incluem o estabelecimento de critérios para selecionar os voluntários tanto no início como no final dos testes, além de definir os protocolos clínicos e de treinamento. É meu papel supervisionar também a equipe de médicos, fisiatras, enfermeiros, fisioterapeutas e psicólogos, inclusive do ponto de vista ético, assim como coordenar a integração da área clínica com a de engenharia e de robótica com os voluntários. Participo também de conferências virtuais e presenciais, com visitas mensais a São Paulo.

Como a senhora passou a integrar a equipe de Nicolelis?
Fui convidada a participar como médica voluntaria durante a primeira reunião com vários colaboradores internacionais na Universidade Duke, na Carolina do Norte, em novembro de 2012. Desde então atuo como chefe da equipe clínica do projeto Andar de Novo.


O que Andar de Novo tem de inovador?

Há muitas inovações no projeto, como o fato de o exoesqueleto ser acionado por eletroencefalograma, um método não invasivo que registra a atividade elétrica dos neurônios. O que me impressionou muito é a integração e colaboração dinâmica e intensa das equipes de engenharia e de robótica com a equipe clínica. Aqui nos Estados Unidos temos muitos experts renomados em diversas áreas, mas estão em departamentos diferentes. Em São Paulo, estávamos todos num mesmo laboratório, debaixo do mesmo teto, o que nos permitiu trabalhar intensamente todos os dias para atingir uma meta gigantesca num tempo recorde.

projeto andar de novo/big bonsai e lenteviva filmes
O exoesqueleto é acionado por eletroencefalograma, um método não invasivo que registra a atividade elétrica dos neurônios


Como a senhora avalia o conjunto da equipe?

Existem muitos colaboradores no grupo que eu chamo de “minigênios”, que têm muita competência, garra e criatividade e contribuíram imensamente para muitas das inovações no projeto, entre elas a programação de softwares impressionantes, ajustes nos protocolos de treinamento de acordo com as nossas necessidades clínicas, desenvolvimento de avatar especialmente desenhado para treinamento com eletroencefalograma (EEG) e a posterior integração com o simulador de locomoção.

Em que o exoesqueleto do Andar de Novo está à frente de outros projetos semelhantes, como o da Universidade­ da Califórnia?
Adicionalmente à capacidade de promover feedback aos voluntários, ou seja, permitir que, por meio de sensores no pé e no braço – que são algumas das muitas inovações do projeto, entre outros –, eles possam voltar a ter sensações. O exoesqueleto inicialmente desenvolvido pela Universidade de Berkeley, atualmente conhecido como EKSO, não é acionado por EEG e não dá esse feedback. Existem muitos outros exoesqueletos. Na minha opinião, é excelente que muitos pesquisadores estejam trabalhando em prol dos pacientes com paralisia.

Em geral, quais são os avanços e os desafios no desenvolvimento dessa tecnologia da qual a senhora participa?
Existem muitos avanços, como os já mencionados. Mas o ­Andar de Novo é uma tecnologia como a do telefone celular, por exemplo. As inovações e avanços podem e devem acontecer para melhor atender às necessidades dos pacientes. Acho que todos da equipe entendemos que há vários desafios pela frente, como reduzir o peso e as atuais dimensões do protótipo. E, claro, o seu custo.

E assim passar a ser acessível para pessoas com paralisia em todo o mundo…
Seria maravilhoso se um dia a interface cérebro-máquina pudesse auxiliar em atividades do dia a dia. Como médica e pesquisadora, eu também gostaria de ver as várias tecnologias e seus componentes desenvolvidos durante o projeto Andar de Novo como um todo, e não apenas com relação ao exoesqueleto, aplicadas em outras áreas, como o controle sobre os esfíncteres (musculaturas que retêm ou liberam a urina e as fezes), o que é muito importante nas pessoas com lesão medular, por exemplo. E também serem aplicadas em outras condições neurológicas devastadoras, além da lesão medular. Os maiores desafios são, obviamente, os financeiros. Todos os colaboradores seniores trabalharam voluntariamente neste projeto até agora, mas não há como prosseguirmos desta maneira indefinidamente.

Qual a estimativa para que as pessoas com paralisia possam vir a se beneficiar com a tecnologia que o Andar de Novo está desenvolvendo?
Não podemos esquecer que existem componentes da tecnologia que já têm aplicações práticas. Por isso eu vejo o Andar de Novo como um projeto que vai além do exoesqueleto, que envolve outras tecnologias que podem ser desenvolvidas a partir dele se houver financiamento. Há muitos componentes que eu gostaria de utilizar nos Estados Unidos, em conjunto com as tecnologias e pesquisas que desenvolvemos aqui na Universidade de Kentucky e no Hospital de Reabilitação Cardinal Hill.

Qual é o desenho ideal de exoesqueleto que vocês, pesquisadores da equipe, vislumbram? Trata-se de um modelo ainda distante da realidade?
O exoesqueleto que foi apresentado durante a abertura da Copa do Mundo é somente uma primeira versão. Todos nós do projeto temos isso em mente, todos sabemos disso. Da mesma maneira que a cada dia temos novos modelos de aparelhos celulares, cada um mais moderno, com funções cada vez mais rápidas e complexas, acontece a mesma coisa com a ciência. Não tem como ser diferente.

Atualmente, quais são os grandes objetivos, avanços e desafios da medicina de reabilitação?
Existem muitos desafios, que passam pela implementação de tratamentos mais eficazes, a conscientização do público quanto às condições neurológicas, melhores condições de acessibilidade nas comunidades, reintegração dos pacientes na força de trabalho e muitas outras coisas que ficaríamos horas discutindo. Aqui nos Estados Unidos o tempo de internação na fase aguda do problema que leva a sequelas e o número de terapias ambulatoriais são muito curtos, e constantemente batalhamos com relação a isso.

Para a senhora, que é brasileira, como é trabalhar num projeto como esse?
Eu saí do Brasil em 1994, em busca de melhores tratamentos para os pacientes que necessitam ou que necessitavam de reabilitação. Naquela época, no Brasil, não havia condições de realizar uma pesquisa desta magnitude. Assim, para mim foi uma honra poder voltar ao meu país e trabalhar em prol dos pacientes que sofreram doenças devastadoras.

Como deve ser o trabalho com reabilitação?

Eu, como médica pesquisadora, que trabalha e vivencia diariamente as dificuldades dos pacientes que não conseguem mexer um braço, a mão, ou andar, realizar atividades simples, como comer de maneira independente, ir ao banheiro ou até mesmo se comunicar com entes queridos, gostaria que os pesquisadores mudassem o foco para o bem-estar dos pacientes. Se eu tivesse alguém da família com uma doença devastadora, iria atrás de melhores tratamentos e pesquisa. Se pudéssemos trabalhar juntos em prol dos pacientes, o mundo seria bem melhor. Mas acho que sou muito pragmática ou venho mesmo de um outro planeta.