Ustra é condenado a indenizar família de jornalista morto na ditadura

Sentença não tem caráter penal e visa a reconhecer que coronel foi culpado pela morte de Luiz Eduardo da Rocha Merlino em 1971 nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo

São Paulo – O Tribunal de Justiça de São Paulo condenou o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra a pagar indenização de R$ 100 mil à família do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, morto sob tortura em 19 de julho de 1971 em São Paulo. A decisão cumpre o pedido da família de manifestar que o militar é culpado pela nas dependências do DOI-Codi, órgão da repressão.

A juíza Claudia de Lima Menge, da 20ª Vara Cível do foro central de São Paulo, manifestou na sentença, após ouvir testemunhas de acusação e de defesa, que é evidente que o coronel dirigia as sessões de tortura e “calibrava” a intensidade e a duração dos golpes, além de escolher os instrumentos utilizados. “Mesmo que assim não fosse, na qualidade de comandante daquela unidade militar, não é minimamente crível que o requerido não conhecesse a dinâmica do trabalho e a brutalidade do tratamento dispensado aos presos políticos. É o quanto basta para reconhecer a culpa do requerido pelos sofrimentos infligidos a Luiz Eduardo e pela morte dele que se seguiu, segundo consta, por opção do próprio demandado, fatos em razão dos quais, por via reflexa, experimentaram as autoras expressivos danos morais”, afirma a juíza na decisão, a segunda do Judiciário paulista que reconhece, no âmbito civil, a culpa de Ustra – a primeira havia sido obtida pela família Teles de Almeida.

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A condenação não tem caráter penal, ou seja, não levará o coronel a cumprir pena, mas era importante para que a família pudesse obter do Estado brasileiro o reconhecimento das violações cometidas contra Merlino. A viúva do militante, Angela Mendes de Almeida, considera que este é um passo importante na busca dos familiares pela justiça e pela verdade. “Fico muito contente pelo fato de que a juíza ouviu com muita atenção todas as testemunhas que indicamos e entendeu de que caráter tinha sido este ato bárbaro que levou à morte do Luiz Eduardo Merlino”, disse. “A gente ficou extremamente sensibilizada, inclusive com a sentença, onde ela reconhece que nenhuma indenização vai ser capaz de sanar a dor da perda dessa pessoa, mas, dado que atualmente não é possível mover processos judiciais por causa da interpretação que o Poder Judiciário faz da Lei de Anistia, a ação por danos morais foi a única possibilidade.”

Em 2010, o Supremo Tribunal Federal interpretou que a Lei de Anistia era válida para proteger violações de direitos humanos cometidas por agentes de Estado. Em dezembro daquele ano, porém, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil no caso Gomes Lund, referente à Guerilha do Araguaia, e manifestou que o instrumento aprovado pelo Congresso sob regime autoritário não deveria servir de pretexto para deixar de punir torturadores. Desde então, a maior parte das ações penais vem sendo rejeitada com base na argumentação estabelecida pelo STF, desconhecendo a jurisprudência internacional. 

No caso do Judiciário paulista, duas ações no âmbito civil tiveram êxito ao levar em conta a visão manifestada pela Corte Interamericana.  “Não é de olvidar, porém, que até mesmo a anistia assim referendada pela Corte Suprema não está infensa a discussões, tendo em conta subsequente julgamento proferido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), em que o Brasil foi condenado pelo desaparecimento de militantes na guerrilha do Araguaia, enquadrados os fatos como crimes contra a humanidade e declarados imprescritíveis”, escreve a juíza.

Merlino e a companheira Angela Mendes de Almeida viveram na clandestinidade entre 1968 e 1971, quando, após um período na França, o jornalista retornou ao Brasil e foi preso. A versão inicial era de que o jornalista havia cometido suicídio durante uma transferência de presídio. Em audiência no Tribunal de Justiça em julho do ano passado, testemunhas reforçaram a visão de que Ustra comandou a sessão de tortura que levou à morte do militante.