ambiente

Respeito à fronteira

Violações à reserva legal do Cerrado, destruição de matas ciliares e uso intensivo de agrotóxicos marcam a história da agricultura no oeste baiano. Com aumento da fiscalização e mercado mais exigente, produtores decidiram se mexer

Marcel Gomes

Produto para exportação: na margem esquerda do Velho Chico estão as maiores fazendas de algodão do país

À  margem esquerda do rio São Francisco, o oeste baiano é uma das maiores fronteiras agrícolas do país. O plantio de soja, algodão e café avança em suas terras planas do Cerrado. A região é a maior produtora nacional de algodão, com mais de 1 milhão de toneladas colhidas por ano, e a sétima no ramo da soja. Cada safra gera para os 39 municípios da região uma riqueza estimada em R$ 2,4 bilhões, visíveis no crescimento de bairros nobres e no trânsito de picapes de luxo em cidades como Barreiras, Luís Eduardo Magalhães e São Desidério.

Mas tamanho desenvolvimento também veio acompanhado de degradação ambiental. Casos de desrespeito à reserva legal (os 20% que uma fazenda deve manter de cerrado nativo), destruição de matas ciliares e uso intensivo de agrotóxicos marcam negativamente a história de muitos produtores locais, que finalmente decidiram se mexer. Reunidos na Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (Aiba), firmaram parceria com o governo federal e estadual, o Ministério Público e ambientalistas em busca da regularização de suas propriedades. “Não queremos ficar de fora da legislação”, diz José Cisino Menezes Lopes, diretor de meio ambiente da Aiba. Neste mês de setembro, inicia-se um amplo processo de cadastramento das fazendas, identificação dos passivos e planejamento da recuperação, que deve durar três anos e custar R$ 4,2 milhões – dinheiro dos próprios produtores.

A expectativa é que, após esse período, a maior parte das propriedades rurais esteja de acordo com o Código Florestal, que é ainda letra morta em diversas fronteiras agrícolas do país. Mais do que uma crise de consciência, a mudança de atitude é fruto de maior fiscalização das autoridades e da pressão do mercado externo, alvo comercial dos produtores locais. Atualmente, a metade do algodão colhido é exportada.

O projeto de regularização ambiental do oeste baiano foi iniciado em julho de 2008, a partir de uma pesquisa de monitoramento por satélite do uso do solo em sete municípios da região. O trabalho, feito pela Universidade de Brasília em parceria com o governo federal e a organização não governamental The Nature Conservancy (TNC), identificou rios, estradas, áreas de vegetação nativa e atividade agropecuária, núcleos urbanos, irrigação, reflorestamentos e açudes. Os dados revelaram cidades como Cocos, com 83% de matas ainda preservadas, e outras, como Luís Eduardo, com apenas 43%. 

De posse das informações, a TNC procurou os produtores para negociar. “Nossa proposta era repetir a experiência que a TNC teve em Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso, onde um projeto semelhante cadastrou 100% dos produtores”, explica Afonso dalla Pria, especialista em agronegócio e conservação da ONG. Segundo ele, o programa em Lucas, iniciado em 2006, também realizou a identificação do passivo ambiental e a orientação para que os produtores começassem a recuperação das áreas. Apoiado por grandes agricultores locais, especialmente sojicultores, e pela prefeitura, o projeto fez com que no ano passado 80% da matas ciliares degradadas já estivessem em recuperação.

No caso do oeste baiano, após a execução do monitoramento por satélite, a TNC entrou na fase de cadastramento e identificação de passivos ambientais dos agricultores, mas a resistência foi grande. A previsão era cadastrar mil produtores de três municípios da região – Riachão das Neves, Luís Eduardo e Barreiras – entre abril e julho de 2009, mas apenas 200 se habilitaram. Para Dalla Pria, muitos ficaram com receio de que estariam fazendo uma autodeclaração de culpa quanto ao passivo ambiental, tornando-se alvos de processos. Para colaborarem, propuseram então um arranjo legal ao governo da Bahia, o que só foi conquistado nos últimos meses. 

Primeiro, foi firmado um acordo entre o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o governo do estado em torno das operações de fiscalização. O objetivo era aumentar a influência da legislação estadual sobre o tema ambiental, garantindo que acordos fechados no estado não fossem derrubados no âmbito federal. O receio tanto do governo baiano quanto da Aiba era que houvesse uma repetição da Operação Veredas do Ibama, realizada no oeste da Bahia em novembro de 2008.

A Operação Veredas, a maior executada em área de cerrado no ano passado, foi desencadeada por 40 fiscais e resultou em 73 autos de infração e termos de interdição, a maioria por desmatamento irregular. Foram emitidos R$ 33,7 milhões em multas e realizado o embargo de 57,9 mil hectares de terra. “A operação revelou a situação de calamidade ambiental da região”, diz Vânia Maria Passos dos Santos, analista ambiental do Ibama em Barreiras.

Após o acordo com o Ibama, o governo baiano promulgou em julho a Lei Estadual nº 11.478, que permite a redução de até 90% de multas por irregularidades ambientais cometidas por agricultores, desde que entrem no projeto de regularização. “É a regra do jogo que eles queriam”, diz Dalla Pria. Com isso, o representante da TNC acredita que o projeto pode ter resultados semelhantes aos de Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso. Para garantir a transparência do processo, a condução do cadastramento dos produtores ficará a cargo da TNC, mas a Aiba e sindicatos rurais participarão do conselho de administração do projeto.

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Canais e estações de bombeamento foram construídos para levar água a centenas de plantações, como a de banana, em Bom Jesus da Lapa, Bahia. As facilidades agora geram avanço sobre áreas de preservação

Velho Chico

Além da regularização ambiental, governo, produtores rurais e ONGs chegaram a um acordo sobre a cobrança do uso da água do rio São Francisco. A decisão foi tomada no âmbito do Comitê da Bacia Hidrográfica do rio, no qual todos esses setores possuem representação. Prevista pela Lei 
nº 9.433, de 1997, mais conhecida como Lei das Águas, a cobrança só é aplicada hoje em duas grandes bacias hidrográficas brasileiras, ambas no Sudeste – a do rio Paraíba do Sul e a dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ). Seu objetivo é garantir que usuários das águas, como agricultores, empresas de saneamento e indústrias, financiem projetos de preservação dos mananciais, definidos pelo comitê.

“A cobrança no São Francisco começa no início de 2010”, avisa o gerente de cobrança pelo uso de recursos hídricos da Agência Nacional de Águas (ANA), Patrick Thomas. Os valores foram definidos no mês de maio pelo comitê. Na captação de água sem tratamento, a taxa será de R$ 0,01 por metro cúbico. No consumo, que responde pela parcela da água captada que não retorna ao rio, sobe para R$ 0,02. E será mais alta no caso de lançamento de dejetos ou água contaminada, chegando a R$ 0,07 por quilo de carga orgânica. 

Atualmente, o Comitê da Bacia e a ANA articulam a fase de implantação da cobrança, com a contratação provisória de uma empresa para administrar os recursos. Estima-se uma arrecadação de R$ 20,6 milhões por ano, a serem aplicados em projetos que vão desde estações de tratamento de esgotos até disseminação de modelos agrícolas mais sustentáveis. 

Primeiro, apenas produtores que captam água diretamente do São Francisco pagarão a taxa, mas logo a conta deverá chegar para aqueles que usam poços ou água de afluentes do rio. Isso porque, de acordo com Thomas, o início dos pagamentos em uma bacia hidrográfica estimula outros comitês de bacia a fazer o mesmo. É o que ocorre, por exemplo, com o rio Grande, que corta o oeste baiano antes de desaguar no São Francisco, cujo comitê já está tratando do assunto. “Mas é um processo que leva tempo e instituir a cobrança pode demorar um pouco”, alerta o gerente da ANA. 

Diferentemente do São Francisco, que é considerado um rio da União por cruzar mais de um estado – nasce em Minas Gerais e passa por Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, antes de desaguar no oceano –, o rio Grande é de responsabilidade estadual, uma vez que possui nascente e foz dentro do território baiano. As águas subterrâneas, captadas para irrigação e também passíveis de cobrança, são por lei sempre controladas pelos estados. No oeste da Bahia, a agricultura irrigada representa 5% da área plantada. São 80 mil hectares beneficiados por 800 pivôs, de um total de 1,5 milhão de hectares cultivados. Trata-se de um dos maiores perímetros irrigados do país. 

Se os agricultores aparentemente estão satisfeitos, o mesmo não acontece com ambientalistas. Para Martin Mayr, da ONG 10Envolvimento, com sede em Barreiras, e integrante do Comitê da Bacia do São Francisco, os valores a serem cobrados são “ridiculamente baixos”. “Os R$ 20 milhões estimados talvez não sejam suficientes nem sequer para manter os funcionários que farão a cobrança”, critica Mayr. Vale lembrar que a taxa não será aplicada apenas na Bahia, mas em todos os estados por onde passa o São Francisco, e os projetos de preservação terão de ser distribuídos por toda essa extensão.

Crítica semelhante é feita por Edilson de Paula Andrade, da secretaria executiva do Comitê da Bacia do rio Paraíba do Sul. Os valores cobrados ali são os mesmos previstos para o São Francisco. Segundo ele, a arrecadação anual é de R$ 8,5 milhões, insuficientes para o desenvolvimento de projetos, em especial no ramo de saneamento, que é prioridade na bacia, mas cujos custos de obras são sempre milionários.

“A solução foi usar os recursos como contrapartida para outros projetos maiores”, explica Andrade. “Para viabilizar um projeto de R$ 6 milhões com a Sabesp (companhia de saneamento e abastecimento de São Paulo), por exemplo, damos R$ 1 milhão de contrapartida”, completa. Estratégia desse tipo foi utilizada pelo Comitê da Bacia do Paraíba do Sul em projetos nos municípios paulistas de São Luís do Paraitinga e Taubaté. 
Para os produtores rurais ligados à Aiba, no entanto, os valores da cobrança não poderiam inviabilizar a produção. “As taxas definidas para o São Francisco são razoáveis. E o produtor entende que, quando paga, também garante o direito à água”, afirma Cisino. De acordo com cálculos da ANA, o impacto da cobrança no São Francisco sobre os custos de produção agrícola serão de apenas de 0,26%. Uma conta maior será paga pelo setor de saneamento, cujo custo subirá 3%. 

“Os produtores têm uma reação normal de resistência no início, afinal veem a cobrança como mais um custo. Mas nossa experiência mostra que, quando conhecem o instrumento, como os recursos são gastos e quais os benefícios, mudam de ideia e passam a ser favoráveis. Foi assim nas outras bacias e é assim no São Francisco”, explica Patrick Thomas.

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