Ciclos incompletos

Marcelo Rubens Paiva: ‘Caímos no mesmo golpe há 500 anos’

Para jornalista e escritor, Brasil vive ciclos que não se fecham e que têm por trás a tradição autoritária de uma elite que conserva privilégios

reprodução/Youtube/Rio 2016

‘A sociedade civil se engana muito facilmente’, afirmou o escritor e colunista, que também criticou o papel da mídia

São Paulo – “Num país como o nosso, com tantas desigualdades, com tantas questões que nunca se encerram, é muito injusto o artista se ausentar dos problemas brasileiros”, diz o jornalista e escritor Marcelo Rubens Paiva, refletindo sobre o papel do artista no cenário político. Sobre essas questões, ele afirma que o Brasil vive de ciclos que nunca se fecham, sendo o último caso o governo interrompido de Dilma Rousseff. “Caímos no mesmo golpe há 500 anos”, afirma.

Na manhã de hoje (18), em debate na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), no Largo São Francisco, centro da capital paulista, Marcelo Rubens Paiva tratou das estruturas de poder e dominação que sempre se impõem ao final de cada um desses ciclos inconclusos, da tradição autoritária, desigualdade, da luta de classes que se apresenta nos mais diversos espaços, da corrupção e seus impactos na mobilidade de um cadeirante. Mesmo tendo votado em Aécio Neves (PSDB) em 2014 e de se autodenominar crítico da gestão anterior, ele deixou clara sua discordância “com a forma em que o Brasil está sendo reorganizado”, em referência ao governo Temer – do qual recusou receber, na semana passada, a Ordem do Mérito Cultural, honraria oferecida pelo Ministério da Cultura, e que seria entregue pelo presidente. “Não me sentiria fisicamente confortável com o Temer, junto àqueles caras, colocando um negócio no meu pescoço.”

Colunista do jornal O Estado de S. Paulo, o escritor também não se furtou a criticar o conjunto da mídia durante o processo de impeachment, que na sua concepção ocorreu de forma “tudo muito igual à 1964”. Ele se pergunta se a imprensa nada aprendeu com o governo Collor, alçado ao poder e depois dele apinhado pelos grupos que conformam a opinião pública, assim também como na ditadura civil-militar, que obrigou jornais a pedir desculpas décadas depois. “Quando vão pedir desculpas pelo que aconteceu agora?”

Comparando a Operação Lava Jato com a congênere italiana, a Operação Mãos Limpas, que buscou desmantelar as relações de corrupção que ligavam a máfia e os partidos, Marcelo destacou que aqui, como lá, o discurso da antipolítica toma conta, mas acredita que o fenômeno não deve tomar a dimensão de um Silvio Berlusconi (magnata da mídia, ex-presidente da Itália). “Aqui, a Lava Jato produziu um Doria, até o momento”, afirmou em alusão ao prefeito eleito em São Paulo, João Doria (PSDB), que surfou no discurso da antipolítica, se intitulando como um gestor.

Para o escritor, a Lava Jato também corre o risco de incorrer na lógica do ciclo incompleto, pois, de maneira seletiva, aquilo que poderia ser um divisor de águas no combate à corrupção no país virou uma máquina que quer destruir um partido, um projeto político e suas lideranças. “A sociedade civil se engana muito facilmente”, diz, se referindo tanto aos esforços para promover o engano, a partir da cobertura distorcida da mídia, como a um esforço individual, de auto-engano, que quer fazer acreditar que todas as mazelas terminaram com o fim do governo do PT.

“Estou sendo radical, porque é preciso nesse momento”, justifica. Como cadeirante, o escritor se enfurece com a corrupção, por exemplo, quando não encontra uma rampa de acesso em bares e restaurantes, ou ainda a falta de banheiros adaptados, como determinado por lei. Ele sabe que essa realidade só existe provavelmente por causa de suborno concedido a algum fiscal para que não enxergasse aquela situação.

Diálogos

Também esteve presente no debate Humberto Campana, artista plástico que, junto com seu irmão Fernando, compõe uma dupla reconhecida, no Brasil e no exterior, por incorporar materiais rústicos e de reúso, como palha, bambu, ralos, mangueiras ou plástico-bolha no design de móveis.

Para ele, o design é ferramenta que serve para democratizar o conforto e a beleza. Ele também desenvolve projeto social com mulheres de presos, na Favela do Moinho, em São Paulo, que costuram materiais incorporados às suas obras. Segundo Humberto, é esse “trabalho de formiguinha” a sua principal contribuição para o país em momentos de turbulência.

Aberto hoje, o ciclo Diálogos Brasileiros é iniciativa do professor de Direito Econômico Alessandro Octaviani. Durante à tarde, o evento debate o papel dos intérpretes do Brasil, e, à noite, o papel das instituições, com a presença da empresária Luiza Trajano (Magazine Luiza), Jean Claude Obry, médico e filósofo, autor dos livros Brasil Meu Amor e Projeto JK, e o pré-candidato à presidência Ciro Gomes (PDT).