LUTA E RESISTÊNCIA

Livro é marco histórico da ação política da academia contra ameaças à democracia

Concebido em 22 dias com a participação de 105 autores, obra 'A Resistência ao Golpe de 2016' mostra atuação das universidades contra erros históricos

Lula Marques/Agência PT

Presidenta Dilma, durante lançamento do livro em Brasília, no último dia 29

Brasília – Desde a aprovação da admissibilidade do impeachment pela Câmara dos Deputados, em 17 de abril, acadêmicos, advogados, jornalistas, ensaístas, parlamentares, filósofos e economistas tiveram 22 dias para elaborar suas impressões ou compilar, numa nova análise, artigos já escritos para o livro A Resistência ao Golpe de 2016, e mandar o material para o prelo a tempo de ser lançado no último dia 29 de maio. Um dos objetivos da obra é tentar influenciar a votação final do processo, pelo Senado. Mais que isso, a iniciativa, que contou com 105 autores de todo o país, tem a proposta de mostrar em detalhes o que está acontecendo de verdade no processo de afastamento da presidenta Dilma Rousseff. E, assim, contribuir para a conscientização dos brasileiros, diante de ilegalidades e ataques à democracia.

“Este livro insere-se nessa luta política. Ainda que não necessariamente alinhados política ou partidariamente, abordamos do papel do Supremo Tribunal Federal (STF) à atuação da mídia, das ‘pedaladas fiscais’ aos meandros do Poder Legislativo, do papel dos atores políticos internacionais aos bastidores da Lava Jato, da crise de representatividade à ofensiva golpista. São inúmeros os recortes, ângulos e perspectivas sobre o golpe em curso no Brasil”, conta uma das coordenadoras do trabalho, a professora doutora em Direito Gisele Cittadino, da PUC-RJ, que teve a ideia do livro, ao lado dos colegas juristas Carol Proner e Marcio Tenenbaum.

Os três e o jurista Wilson Ramos Filho organizaram a produção. “Colaborar na organização foi uma tarefa que, em alguma medida, me fez superar o trauma de uma importante derrota política. Não foi fácil atravessar o indigno e infame dia 17 de abril de 2016 – histórico, na avaliação da Rede Globo. Afinal, ali praticamente se consumava um golpe, um rompimento com o princípio democrático, uma violação da decisão soberana de mais de 54 milhões de brasileiros que, em 2014, legitimamente elegeram Dilma Rousseff como Presidente da República”, afirma Gisele, no texto de abertura.

Para a coordenadora, a decisão da Câmara dos Deputados foi “uma violência em si”, mas também representou “a vitória da ignomímia, da corrupção, do populismo”. E mostrou uma parte da sociedade brasileira expressando de forma pública ressentimento, preconceito, ódio de classe, machismo e misoginia.

O trabalho passa por autores como Aderbal Freire Filho, Beatriz Vargas Ramos, Eduardo Guimarães, Guilherme Boulos, Luiz Moreira, Jandira Feghali, João Pedro Stédile, Leonardo Boff, Eugênio Aragão, Paulo Teixeira, Pedro Serrano, Tarso Genro, Waldir Damous, Baltazar Garzón Real, Denise Assis e, até mesmo, o jurista português Boaventura Souza Santos, dentre vários outros.

E destaca pontos primordiais para os que têm acompanhado o que acontece no Brasil, muitas vezes contado de forma unilateral pelos veículos de comunicação. Como quando mostra o significado técnico da expressão “julgamento jurídico e político do impeachment”, num capítulo onde é explicado, de forma didática e num âmbito jurídico, que “ninguém pode ser julgado por conduta que não lhe foi imputada na denúncia”.

‘Protagonistas do espetáculo’

O livro também é muito claro quando avalia o papel dos magistrados como o que é chamado de “protagonistas do espetáculo”. Em especial, o juiz Sérgio Moro, na operação Lava Jato.

“A paranoia, enquanto estrutura clínica, apresenta certos traços constitutivos, como certeza absoluta e delirante; inacessibilidade à dúvida e à autocorreção; falta de acesso ao princípio da realidade e à retificação racional; missão redentora que ao raro se apresenta também como sagrada. Esses traços podem ser facilmente identificados na posição subjetiva de juízes que, sobretudo em processos de grande repercussão pública, passam a atuar com alarde, como se fossem os personagens principais do processo”, avalia o professor de filosofia de Direito e psicanalista Agostinho Ramalho Marques Melo, da UFPR.

Chama a atenção, também, o capítulo em que a doutora em Direito Aline Salles Santos faz uma análise do Judiciário na crise política brasileira. Para ela, a pretensa busca de justiça e combate à corrupção “não dá ao Judiciário carta branca para usurpar o papel do povo na escolha eleitoral, nem solapar garantias mínimas do devido processo legal”. Ao contar sobre a polêmica provocada pela Câmara dos Deputados para decidir sobre o rito do impeachment, que terminou sendo decidida pelo STF, a jurista explica que embora o rito seja importante e sua não observância possa gerar nulidade, a forma não é tudo.

“A razão de ser do processo não é a forma e sim o conteúdo. E da maneira como tem sido discutido o processo, o que se vê é simples forma, sem garantir a sua constitucionalidade. Falta-lhe, contudo, que se enquadre nas categorias de crime de responsabilidade previstas na Constituição”, observa.

Uma das avaliações mais contundentes é a “miséria política brasileira”. Neste capítulo, o doutor em Ciências Sociais Giovanni Alves, da Unicamp, afirma que o processo de ruptura da instabilidade democrática no Brasil, neste 2016, corresponde à culminação do longo movimento histórico de reação às políticas dos “governos neodesenvolvimentais” desde que Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito em 2002.

“Desde que assumiu a presidência da República, o PT passou a ser alvo de ofensiva de setores conservadores e reacionários da sociedade brasileira”, acentua Alves. Segundo ele, do mensalão à operação Lava Jato, presenciamos o espírito performático do golpismo na articulação do Poder Judiciário com a grande mídia hegemônica anti-PT e vinculada à direita neoliberal.

“Enquanto vivíamos numa conjuntura de crescimento da economia brasileira por conta do ciclo de valorização das commodities e crescimento espetacular da China (2003-2010), o presidente Lula manteve a coalizão política da governabilidade no Congresso Nacional”, ressalta.

O sociólogo traça uma longa narrativa, detalhando todo o processo econômico desde 2003 para explicar que a presidenta Dilma Rousseff iniciou seu primeiro governo, em 2010, numa conjuntura de crise da economia global, e precisou adotar medidas impopulares na economia que ajudaram os oposicionistas a usar esse período na crise política dos últimos anos.

Decisão das oligarquias

“O economista Marcio Pochmann sintetizou numa frase a tragédia do lulismo: ‘Os ricos não nos querem mais’”, observa. “Golpear o PT no governo e na sociedade civil foi uma decisão suprema das oligarquias que compõem o bloco de poder oligárquico no Brasil; e que historicamente controlam há séculos o sistema de produção e reprodução social e o sistema de representação política”, acrescenta Giovanni Alves.

É nesse contexto que são abordadas também, questões como a descrença popular nas instituições, o uso das primeiras manifestações populares, em 2013 – que pediam lá atrás melhorias para o país de forma generalizada e que poderiam ter sido respondidas com uma reforma política efetiva que o Congresso Nacional não concretizou – a participação significativa e golpista de Eduardo Cunha em todo esse processo e as diversas armações e conchavos políticos observados ao longo do período. Inclusive, uma comparação detalhada sobre as diferenças entre o golpe militar de 1964 e o de agora.

“O livro, para nós, é um grande instrumento de luta. Vem sendo gestado no movimento que começou lá atrás e está agora no Senado, por meio do processo de impeachment. A finalidade é justamente desmascarar um processo sem substância, que querem chamar de impeachment, mas que não aceitamos e chamamos de golpe”, disse a professora doutora Beatriz Vargas Ramos, da UnB no lançamento, realizado em Brasília no Memorial Darcy Ribeiro, em meio a quase 5 mil alunos, políticos diversos, professores e a presidenta Dilma.

Até mesmo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que divulgou um vídeo sobre o trabalho, destaca a coragem do ato dos professores e demais autores. “Há momentos na história de um país em que dizer a verdade é um ato de coragem, é um grande gesto de defesa da democracia”, afirma Lula. “Esse livro narra nos mais diversos aspectos a farsa do impeachment, expõe os meandros e interesses das alianças dos partidos derrotados nas urnas e a verdadeira natureza do golpe”.

Inclusão social

Já Dilma Rousseff, ao agradecer aos autores durante o lançamento, destacou as políticas de inclusão social que ajudaram o Brasil a reduzir desigualdades e que nunca foram aceitas pelas elites. De acordo com a presidenta afastada, a forma como ela foi recebida, em meio à ovação dos alunos, assim como a receptividade de professores e universidades de todo o país, mostram que as ações desenvolvidas pelo Executivo seguiram um rumo certo, “e é isso que querem desconstruir”, assinalou.

Dilma, ao mencionar os programas sociais, chegou a ter seu discurso interrompido por um estudante, negro, que gritou “presidenta, obrigado por me fazer conseguir uma vaga na universidade”. Em outro momento emocionante, as palavras da presidenta afastada foram reforçadas por aplausos, quando a atriz brasiliense Camila Márdila, intérprete da personagem Jéssica, no filme Que Horas ela Volta, (e ex-estudante da UnB), subiu ao palco e lhe deu um abraço.

O filme expõe exatamente as contradições entre as classes sociais e mostra a filha da empregada sendo aceita numa das melhores universidades do país, onde o filho dos patrões não conseguiu passar. “A Camila representou a igualdade, a postura de luta e de força das Jéssicas e Jéssicos do Brasil”, disse Dilma. “A Jéssica ajudou as pessoas trabalhadoras a verem que é possível buscar um futuro, lutar pela profissão que querem, pela universidade. Ajudou muita gente a conhecer outro universo, perceber que o mundo é maior, que as possibilidades são outras. Muitas pessoas se perceberam como a personagem”, ressaltou a atriz, depois do evento.

Repercussões à parte, um ponto certo que leva à maior reflexão a ser feita a partir da leitura do livro é a conclusão, por parte dos autores, de que não será possível contar, na defesa do Estado democrático de direito, com boa parte da classe política e judicial do país.

“Nada de novo sob o nosso sol tropical. No entanto, desde que tiveram início as tratativas vergonhosas, os acordos espúrios e os golpes covardes, já no final de 2014, fomos capazes de imediatamente voltar a fazer aquilo que sempre fizemos muito bem: organização e luta política, sem esquecermos que traumas existem para serem superados”, destaca o prefácio.

Está aí a lição que o trabalho deixa para todos os brasileiros, num momento em que as instituições, embora fortalecidas nos últimos anos, hoje estão mais frágeis e seus representantes destacam constantemente que a luta pela democracia precisa continuar. Nada melhor do que fazer essa luta a partir de um ambiente tão pulsante como as universidades.