Atuação junto a emergentes reforça posição do Brasil por reforma da ONU

Prioridade a países em desenvolvimento coloca Brasil em posição relevante

Julho de 2009: Lula e líderes do G-5, com a camisa da Seleção, na Itália. País conquista mais espaço para nações em desenvolvimento (Foto: Ricardo Stuckert/Pr)

São Paulo – O aprofundamento das relações com os países do hemisfério Sul rende novos desafios ao Brasil, mas coloca a nação como participante progressivamente mais relevante no cenário internacional. Ao mesmo tempo em que o comércio oferece uma visão mais clara das transformações da política externa brasileira, há elos mais sólidos também em outros aspectos.

Ganhou força no atual governo uma releitura de uma linha histórica da política externa definida pelo Itamaraty. O chanceler Celso Amorim entende que é preciso rever o conceito de “não intervenção” sob a ótica da “não indiferença”. Por exemplo, se o Irã estava prestes a sofrer sanções por conta da questão nuclear, mas a via diplomática não estava esgotada, o Brasil se considerava na obrigação de se colocar como negociador – em vez de ficar de fora da questão sob receio de intervir em uma questão internacional.

O mesmo padrão tem sido buscado na América Latina, região na qual o Brasil sempre teve papel importante. Quando teve lugar o golpe contra Hugo Chávez, em 2002, último ano de Fernando Henrique Cardoso, o então presidente condenou a ação da oposição venezuelana. Meses depois, já sob Lula, o Planalto comandou a formação do Grupo de Amigos da Venezuela. Com outros países vizinhos, o colegiado foi responsável por mediar a negociação entre o governo e a oposição, visando a garantia de que um novo golpe não ocorreria.

Em julho de 2009, o governo brasileiro condenou o golpe contra o presidente legítimo de Honduras, Manuel Zelaya. Outros governos e a Organização dos Estados Americanos (OEA) seguiram a mesma linha. Mas a embaixada brasileira em Tegucigalpa acabou por ser o destino de Zelaya quando este tentou retornar ao poder, em setembro.

À época, vários parlamentares de PSDB e DEM atacaram a posição do Brasil, afirmando que o melhor seria manter-se distante da polêmica. Chamado ao Senado, Amorim apontou que receber Zelaya na embaixada era um convite ao diálogo: “Ele teria sido preso, morto ou estaria em uma serra planejando uma revolução. Achamos que estamos contribuindo para o diálogo e nossa embaixada não está interferindo”, disse, na ocasião.

O Brasil continuou a insistir que a normalidade hondurenha só seria possível com a volta de Zelaya ao poder. Quando houve eleições, os Estados Unidos apressaram-se em reconhecer a vitória de Porfírio ‘Pepe’ Lobo. A resposta do presidente Lula foi diferente. “Não dá para fazer concessão a golpista. Ponto pacífico”, afirmou.

Mercosul

Não é apenas no socorro a crises que o Brasil ampliou sua participação. O Mercosul, apesar de avanços tímidos na redução de suas assimetrias internas, tem criado mecanismos supranacionais ou buscado o fortalecimento de outros já existentes, como o Parlasul, o órgão legislativo do bloco.

Houve também a constituição do Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem), que tenta exatamente diminuir as disparidades entre os países-membro. A entrada da Venezuela é outra tentativa no sentido de tornar o bloco mais competitivo e mais atraente internamente.

André Luiz Reis da Silva, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, entende que, diferentemente do que apontam algumas críticas, muitas vezes vindas de outros países, o Brasil não deixou o Mercosul de lado. “Como o Brasil se agigantou ao longo da década, ocorreu uma difusão de interesses. O Mercosul não é nosso único espaço de atuação, o Brasil é um ator global”, argumenta.

Maria Regina Soares de Lima, coordenadora do Observatório Político Sul-americano e professora do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj – centro de pesquisa e pós-graduação em ciências sociais), entende que o problema da assimetria sempre estará presente quando se tratar das relações entre o Brasil e os outros países da América do Sul.

No entanto, sua avaliação é que isso tem perdido força à medida que a atuação do Itamaraty se torna mais cooperativa e compreensiva em relação às dificuldades dos vizinhos. “A política clara do governo Lula foi de levar em conta essa assimetria e pela primeira vez na história da região instituir mecanismos para atenuar essa característica.”

Outro exemplo disso é a criação, em 2004, da União de Nações Sul-Americanas (Unasul).  O organismo transformou-se no principal foco de discussão entre os países da região. Um dos momentos em que esteve no centro das atenções foi durante a tensão Venezuela e Equador versus Colômbia, em 2008, quando o exército de Alvaro Uribe violou a fronteira equatoriana e matou membros das guerrilhas do país. Raúl Reyes (então o segundo homem na hierarquia das Farc) e outros 20 rebeldes foram vitimados por um ataque de mísseis colombianos

Efetiva

A ampliação das relações com o Sul fortalece os argumentos para um antigo anseio brasileiro. A Índia, parceira no campo comercial, é também uma das aliadas importantes na tentativa brasileira de reformar o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). O conselho, formado no pós-Segunda Guerra Mundial, reserva aos cinco membros permanentes (EUA, França, China, Rússia e Grã-Bretanha) o direito de veto sobre todo e qualquer tema.

Quando criado, o órgão abarcava 20% dos integrantes das Nações Unidas. Hoje, a proporção de representados é de apenas 8%, mesmo com a reforma de 1965, que ampliou o número de assentos não-permanentes para 10. A argumentação brasileira e de outras forças que defendem a reestruturação do órgão parte da mudança na ordem mundial. O fim da Guerra Fria mudou a divisão do mundo, passando aos poucos da bipolaridade entre Estados Unidos e União Soviética para uma dispersão por pólos de poder de pesos mundial e regional.

“São transformações que se deram ao nível interno e externo dos Estados nacionais nos quais se observa o declínio das potências tradicionais e o seu enfraquecimento, incluindo os Estados Unidos, a maior modernização e a maior assertividade política das potências emergentes”, aponta Cristina Pecequilo, professora de Relações Internacionais da Unesp.

Deste modo, seria natural que o Conselho também passasse por transformações. Nesta causa, além da Índia, o Brasil soma-se à Alemanha e Japão para afirmar que o mundo precisa de uma nova distribuição de representatividade.

Nesse sentido, o ministro Celso Amorim retomou, durante o governo Lula, uma bandeira que já havia empunhado quando esteve à frente do Itaramaty pela primeira vez, durante a gestão de Itamar Franco. “Em um esforço de síntese poderíamos descrever a presente conjuntura como um momento de ‘desequilíbrio unipolar’, mistura de desequilíbrio de poder e ordenamento unipolar, aparentemente em transição para uma multipolaridade sem data prevista para se instaurar”, afirmou durante discurso em 1998 na Organização dos Estados Americanos (OEA).

A antiguidade da reivindicação e a dificuldade em levá-la adiante deixam claro que as mudanças não são simples. A ONU discute o tema internamente e tem o aval do secretário-geral Ban Ki-Moon para tal, mas algumas potências resistem a abrir mão de seu poderio concentrado.

O caso do Conselho de Segurança mostra um dos desafios do Brasil: aproveitar a conjuntura internacional ao mesmo tempo em que contesta a ordenação de forças. Delber Andrade Lage, diretor do Centro de Direito Internacional, aponta que as relações com o Sul são fundamentais na abertura de novas alternativas. “Se o Brasil toma a decisão de ‘sair de baixo da asa’ dos países desenvolvidos e liderar um arranjo Sul-Sul, já desponta como principal liderança dessa aliança”, pondera.

Agenda de segurança

Para convencer o mundo de que o Brasil está capacitado a exercer papel mais importante, passa-se a atuar com mais força nas questões relativas à segurança mundial. O exemplo mais consolidado é o da Minustah, missão de estabilização da ONU para o Haiti, comandada pelo Brasil.

Mas há, também, um esforço acentuado recentemente, que é o de colocar-se como mediador das tensões no Oriente Médio. Se os ‘velhos’ atores, como Estados Unidos e União Europeia, estão desgastados demais, o Brasil se coloca como um negociador com menos interesses comerciais em jogo – e, portanto, mais imparcialidade.

O acordo relativo ao programa nuclear do Irã é o resultado concreto dessa negociação. André Luiz Reis da Silva, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, entende que o Brasil é um gigante que está ocupando seu espaço. “Claro que isso gera ciumeira em alguns outros países. E também gera ciumeira na oposição política interna e aí começam a aparecer as mais diversas críticas, algumas bastante infundadas”, conclui.