Noite em Claro

Manifestantes ocupam praças e renovam mobilização popular de esquerda na França

Franceses saíram de casa para protestar contra reforma trabalhista de Hollande no dia 31 de março. Muitos decidiram ficar e ocupar as ruas, unindo lutas sociais no país

Force Ouvrière

Projeto de reforma trabalhista na França explodiu faísca da indignação coletiva

OperaMundi – Centenas de milhares de franceses – 390 mil, segundo as autoridades, e 1,2 milhão, de acordo com sindicatos – saíram às ruas para protestar na última quinta-feira (31) e parte deles decidiu, numa manobra inédita e planejada, não voltar mais para casa.

“Nuit Debout” (“Noite em Claro”) é o nome deste movimento, pautado por uma ideia que atravessava o discurso de cada manifestante presente nesta segunda-feira (4), no quinto dia consecutivo de ocupação da Praça da República, em Paris: a “convergência das lutas”. A faísca que explodiu o rojão da indignação coletiva foi o projeto de lei apresentado em fevereiro pela ministra do Trabalho, Myriam El Khomri, que prevê reformas na legislação trabalhista francesa visando uma flexibilização das horas de trabalho e criando brechas que favorecem demissões menos dispendiosas para o patronato, entre outros pontos considerados insustentáveis por diversos setores da sociedade francesa.

Mesmo que o presidente François Hollande afirme que “nenhum assalariado francês terá nenhum de seus direitos revistos”, isto não parece ressoar entre as 4 mil pessoas que se reuniram na noite do dia 31 de março na Praça da República. Manifestações paralelas se multiplicam em outras cidades-chave da França como Grenoble, Orléans, Toulouse, Lyon, Dijon, Bordeaux e Estrasburgo na velocidade em que são transmitidas pelo cidadão comum nas redes sociais.

Provocada pela já famigerada Lei El Khomri, a população reagiu em massa: uma petição coletiva intitulada “Lei do Trabalho: não, obrigado” (“Loi Travail, non merci”) recebeu mais de 1 milhão de assinaturas em menos de 48 horas. Tal participação é notável nesta potência centro-europeia detentora de um histórico de lutas sociais, mas recentemente adormecida por uma oposição fragmentada e um governo altamente impopular e ameaçada pelo fantasma da extrema-direita, que vinha surfando na onda da estagnação generalizada. Se os franceses precisavam de um pretexto para reagir, a Lei El Khomri parece ter oferecido o elemento que faltava.

Mas se no dia 31 os franceses saíram de casa para protestar contra a precarização do trabalho, a agenda dos últimos dias vem se transmutando e se multiplicando, numa polifonia coletiva de protestos. Numa espécie de Ágora grega revisitada, franceses de diversas etnias, idades, classes sociais e reivindicações são convidados a tomar a palavra numa assembleia improvisada no meio da praça, onde um megafone circula livremente.

Os temas surgidos nesta segunda-feira (4) alcançavam um longo espectro de reivindicações sociais: contra a energia nuclear, o agronegócio tradicional, o Estado securitário de urgência, a voracidade do sistema capitalista, os pesticidas, a dominação das multinacionais, a “saúde como mina de dinheiro”, os “tribunais coniventes com o sistema”, e a favor das “conquistas feministas”, dos “pequenos agricultores e produtores locais”, dos “direitos sociais”, da “legalização da maconha medicinal”, das “soluções alternativas e altermundialistas”.

Sublinhando o ineditismo desta manifestação, a “Noite em Claro” conseguiu, pela primeira vez no século 21 na França, reunir categorias sociais num alinhamento transversal que transcende as reivindicações de uma classe única. Frédéric, 45 anos, diretor de empresas do setor aeronáutico que não quis revelar seu nome verdadeiro – e uma figura representativa de uma classe até então pouco afeita a manifestações públicas como os diretores de grandes empresas – explicou sua motivação para sair às ruas na noite desta segunda-feira: “eu tenho uma filha de oito anos. Sei que ela não viverá num mundo muito fácil por causa das desigualdades. Sou muito tímido, não tenho nenhum interesse que meu patrão me veja aqui, mas como eles todos têm a coragem de se indignar, é necessário que saibam fazer a diferença entre o capitalismo que serve a criar serviços e o capitalismo que só serve a interesses próprios, um predador das riquezas”, acredita.

“Não se produz mais na França, especula-se”, continua Frédéric. “Todo o financiamento do nosso sistema de prestação social se baseia no lucro sobre o trabalho. [No setor aeronáutico] Saímos para buscar mão de obra [pagando] oito euros a hora no Marrocos, no caso de um engenheiro, em lugar de contratar esta mesma mão de obra a 65 euros a hora na França”.

Antoine Vihoulou, 43 anos, conselheiro especializado na reinserção profissional na região parisiense de Seine-Saint Denis, é testemunha ocular da “dificuldade de se encontrar um trabalho, sobretudo entre os jovens”, numa França que contabiliza hoje 3,5 milhões de desempregados. Saint-Denis, uma das áreas mais socialmente conflituosas do subúrbio da capital francesa, esteve recentemente em evidência no noticiário mundial por ter sido palco, em 18 de novembro de 2015, da operação policial que acabou com a morte de Abdelhamid Abaaoud, considerado um dos mentores dos atentados do 13 de novembro em Paris.

“Nós, conselheiros de reinserção, infelizmente não possuímos uma varinha de condão. O stress é enorme. As formações profissionais, que sempre foram uma porta aberta para a qualificação e a reinserção no mercado de trabalho, ironicamente hoje são acessíveis apenas a cargos de chefia. A discriminação na França não é somente de classe ou racial, ela é territorial”, diz Vihoulou. Segundo ele, a população de Seine-Saint Denis “é extremamente mal-vista e encontra enormes dificuldades na hora de encontrar um emprego”.

Outro mérito desta nova onda de protestos coletivos foi reacender a chama do protagonismo estudantil e jovem em manifestações populares, reavivando, para a alegria indisfarçável dos franceses, a memória coletiva das manifestações de maio de 1968. Não foram as grandes forças tradicionais sindicais as primeiras a conclamar um “levante popular” na última semana. A primeira convocação desta “Noite em Claro” foi feita pela União Nacional dos Estudantes da França (Unef), no dia 1º de março, em comunicado oficial difundido nas redes sociais.

Loïc Schneider, 20 anos, estudante de direito de Nancy (nordeste da França), acampado na Praça da República desde o início dos protestos, era uma das jovens lideranças que ajudavam a organizar a lista de depoimentos no megafone na noite de 4 de abril. “Quando cheguei aqui no dia 31 de março, assistimos à projeção de um filme num telão montado na praça chamado ‘Merci, patron’ (‘Obrigado, patrão’, documentário de François Ruffin, lançado no último 24 de março na França). Éramos cerca de 4 mil pessoas”, conta. “Fiquei até as 5h da manhã, quando a polícia chegou e começou a desmontar as faixas, as tendas que havíamos montado, sendo que tínhamos uma autorização de três dias da prefeitura. Mas aconteceu então essa espécie de energia coletiva espontânea, de pessoas que vinham naturalmente como indivíduos que se encontram com outros iguais para debater temas políticos, econômicos, sociais, para se responsabilizarem pela situação”.