Netinho, um baterista incrível, de fama mundial

Ele tocou em bandas da Jovem Guarda e foi um sucesso do iê-iê-ié

Ao longo de sua carreia Netinho conseguiu ganhar mais destaque e ficou mais famoso do que as próprias bandas das quais fez parte (Foto: Lauany Rosa)

Num bairro tranquilo, com ruas largas, arborizadas e casas espaçosas vivem Luiz Franco Thomaz, o Netinho, e a esposa Sandra Haick. O sobrado de muros altos, com trepadeiras e portão imponente, passa o dia com janelas e portas trancadas, no mais absoluto silêncio. Os donos se levantam às 18h: eles trocam o dia pela noite desde os tempos em que o baterista tocava na madrugada. Então, as atividades da casa começam.

Netinho nasceu em abril de 1946, na Beneficência Portuguesa de Santos, mas cresceu em Itariri, numa casa perto do Rio do Azeite, feita pelo avô materno José Ferreira Franco, no tempo dos bailes, que atraíam pessoas da região, das Festas da Banana e do Sobá, dos imigrantes japoneses, das grandes quermesses. Itariri era festiva à beça. O Cine Teatro oferecia ótimos filmes e peças, algumas estreladas por dona Maria Franco Thomaz, a Mariazinha, mãe de Netinho. “Um dia encenamos Cala a Boca, Etelvina, de Armando Gonzaga, no teatro Coliseu, em Santos. Foi um sucesso.”

A vocacão musical do garoto surgiu na igreja católica. Dona  Mariazinha badalava os sinos que anunciavam o horário da missa. Um dia, atarefada, ela pediu que ele fosse em seu lugar. Foi esse blém-blom que o despertou para a música, que fez com que entrasse na fanfarra do colégio antes da idade permitida. “Ele tocava caixa nas paradas cívicas de 7 de setembro e 15 de novembro” – conta Mariazinha. 

Caricatura do Netinho (Foto: Lauany Rosa)

A ida para um seminário era quase ritual. Os padres frequentavam a casa de dona Mariazinha e a convenceram de que no Diocesano São José, em São Vicente, as chances de aprendizado do pequeno seriam melhores. Mas Netinho nunca quis ser padre. Em menos de um ano, está de volta a Itariri: não se adaptara à vida clerical. Aos 15 anos, ele volta ao ginásio da cidade e começa um romance com uma moça mais velha, de uma família rival na política. A diretora da escola era tia da garota e expulsou o jovem do colégio. Então, o tio dele, João Franco, que era o prefeito, trocou a diretoria do ginásio para  Netinho voltar a estudar. Houve greve de professores para boicotar a nova diretora. O caso provocou tanta confusão, que dona Mariazinha mandou o garoto morar em São Paulo, com a tia Guilhermina.

A mudança fez bem pra ele. “Cheguei ao paraíso” – pensava, maravilhado com a cidade. A tia lhe arranjou emprego no Senac e ele trabalhava e estudava. Um dia, ele foi ao badaladíssimo programa Ritmos para a Juventude, de Antonio Aguillar, na Rádio Nacional. “Fiquei encantado com o movimento e falei que ia ser músico.” À espreita de uma chance, Netinho encontra Urupê, o seu anjo – ou protetor – no seminário, que tocava no The Jordans e o apresentou ao The Clevers, que precisava de um baterista com bateria. Netinho então pediu ao avô Franco que lhe desse o instrumento. Ao entrar na banda que pertencia a Aguilar – The Clevers –, o queridinho do vovô ganhou enfim seu apelido. No dia de estreia, Netinho foi substituído no show por Ventania, um baterista profissional. “Foi uma decepção” – lembra. Mas não desistiu. Largou o emprego e deu uma de “gato”: alterou os documentos para tocar à noite nas boates.

O The Clevers não era uma banda conhecida. Ela tocava em até quatro bailes por noite para conquistar fãs. O estouro dela se deu com a vinda da cantora italiana Rita Pavone ao Brasil, convidada pela TV Record. Como não podia trazer sua orquestra, ela foi acompanhada pelo The Clevers. E, assim, ambos viram sucesso nacional. Mas à fama sucede o racha. Numa turnê à Argentina,  Aguilar não viajou com o grupo, o que causou uma rusga entre o empresário e os músicos. Confundidos com uma banda americana, o pessoal decide se apresentar como Os Incríveis The Clevers. No Brasil, Aguilar fica fulo e monta um novo The Clevers. “Eles tinham uma dúzia de fãs e a gente era artista internacional” – diz Netinho, recordando-se de como o nome da banda virou Os Incríveis.

Política: uma herança de família

O baterista já foi convidado a candidatar-se a vereador da cidade. Curioso, ele participou de uma reunião do partido durante a qual lhe ofereceram dinheiro para arcar com os gastos da campanha. “Fiquei horrorizado. Não tinha trabalhado para receber tanto dinheiro” – afirma. Netinho pediu para conversar com a esposa e nunca mais pensou em candidatura. “Gostaria de ser político, mas sou bobo e ia ser passado para trás.”

No auge do sucesso, Os Incríveis ganham um programa na TV Excelsior. A intenção era ir na esteira do Jovem Guarda, apresentado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, na TV Record. “Acabava o programa deles, começava o nosso” – recorda Netinho. Depois, a banda ainda viajou para o Japão, gravou em japonês e fez o filme Os Incríveis Neste Mundo Louco, quando Netinho, numa viagem de navio pela Inglaterra, conhece Sandra Haick e se enamora da moça. Em 1970, eles se casam; em 1971, têm o primeiro filho, Sandro; em 1977, a menina Samandhi.

Netinho e o Porque Junior (Foto: Lauany Rosa)

Nos anos 1970, Os Incríveis se separam. Netinho fica com os direitos do nome e da marca. Tenta montar outra banda de mesmo nome, sem sucesso. Surge então o Casa das Máquinas, de rock mais pesado, “uma banda de duas baterias” – explica Netinho. O Casa grava em italiano, em espanhol e faria uma turnê ao exterior, quando se desentendeu e terminou.

Netinho volta-se para o lado espiritual e cria o selo Manancial de Amor. Nos anos de 1990, com Eduardo Araújo, produz o show Novo de Novo para comemorar os 30 anos da Jovem Guarda. Durante a divulgação do evento, no programa Jô Soares Onze e Meia, a voz de Netinho falha. Ele não dá entrevista. O médico Carlos Pontes descobre-lhe um câncer nas cordas vocais. Operado, ele reage bem e ainda participa do show na casa Tom Brasil, em São Paulo. Netinho, então, começa o projeto A Criança e o Futuro, com o Centro de Apoio à Criança Carente com Câncer (CACC), com mais 40 artistas e grava um CD com renda revertida para o projeto. Na última década, dedica–se a escrever o livro Netinho – minha história ao lado das baquetas. 

 

Um canto de criação

 
Canto de inspiração (Foto: Lauany Rosa)Netinho possui em casa uma sala agregada, com sofás confortáveis e estantes repletas de discos, CDs, fotos, livros, bibelôs e suvenires de sua carreira. O livro Netinho – minha história  ao lado das baquetas foi escrito nessa sala, durante as madrugadas, com a ajuda de Samadhi, a filha que mora na Austrália. “Por causa do fuso horário, a gente  trabalhava junto, ela de dia e eu à noite, via Skipe, em tempo real” – diz. 
O baterista fez sucesso, ganhou fama e dinheiro, mas nunca mexeu com finanças. Quem cuida das contas e administra a grana é a esposa  Sandra. Até hoje ele não possui conta em banco. Tudo o que adquiriu foi gasto em viagens, pelo mundo afora. “Lotei vários passaportes.” 
O filho Sandro herdou o espírito aventureiro do pai e se lançou numa viagem à Turquia, para comprar pratos de bateria – segundo Netinho, “os melhores do mundo”. 
 
Uma paixão. E a fofoca mundial 

Rita Pavone (Foto: Divulgação Jovem Guarda)A mídia descobriu o romance de Netinho e Rita Pavone e a notícia foi capa dos jornais do mundo. “Eu não era muito chegado nela; ela não era tão bonita e eu tinha outras namoradas” – diz. Netinho então se envolveu com outra cantora italiana, Mary di Pietro. Fotografados juntos, de novo o baterista foi notícia mundial. O contrato com Rita Pavone foi rasgado e ele quase foi expulso do The Clevers. “Eu era moleque, não fazia  por mal, mas para aproveitar as maravilhas do mundo” – conta Netinho, em meio a risos.

 

Netinho e sua bateria (Foto: Divulgação)O que vem pela frente 

Netinho prepara o CD duplo Os Incríveis, dividido em Velhos Tempos, com os sucessos da banda original, e Novos Tempos, com músicas inéditas. Ele também pensa num show pela passagem dos 50 anos da banda, reunindo artistas que fizeram parte de sua carreira num sítio em Cotia.

Enquanto isso, ele  finaliza o livro Revisando Culpas, em que promete revelar as fases mais badaladas, os segredos pessoais, os amores e as brigas dos amigos da Jovem Guarda.

 

As lembranças de dona Mariazinha, a mãe de Netinho

Por: Enio Lourenço

Dona Maria (Foto: Enio Lourenço)

Aos 87 anos, dona Mariazinha guarda na memória a história da família, que se confunde com a do município. A enfermeira aposentada, que está trocando Itariri por Santos, lembra que seu pai, o português José Ferreira Franco, o seu Franco, era chefe de obras da Estrada de Ferro Sorocabana, no início do século 20. Com a expansão da linha de ferro Santos-Juquiá e a construção da estação ferroviária em Itariri, o patriarca ficou na região com a família. Foi ele quem construiu a ponte férrea do Rio do Azeite. Depois, comprou terras, construiu as primeiras casas do povoado e acabou prefeito. “Meu pai foi administrador da vila de Itariri e enfrentou dificuldades para, em 1938, virar Distrito de Paz – subordinado a Itanhaém até 1948. Ele teve problemas com grileiros nos processos das terras devolutas, mas ganhou todos no tribunal de Santos.”
Seu irmão João também foi prefeito duas vezes. Para ajudá-lo numa campanha, dona Mariazinha elegeu-se vereadora. A cidade se desenvolveu na infraestrutura com a gestão dos irmãos. “Na época, só havia água de poço. Meu pai pensara em colocar água encanada, mas foi João quem fez a grande reforma no saneamento da cidade.” Ela se recorda também da praça do coreto: “João dizia que toda cidade tinha uma pracinha para as pessoas se encontrarem e questionava por que Itariri não tinha. Então construiu uma”.
Das lembranças da infância de Netinho, dona Mariazinha resume que ele era “um menino normal, com saúde e levado. Jogava bola e se divertia no rio, saltando da ponte férrea construída pelo avô”. Ela conta que, aos 11 anos, o menino pegava o caminhão com o qual a família transportava banana para São Paulo e vinha com a irmã do sítio paterno a Itariri. “Ele dirigia para estudar teoria musical e deixava o caminhão antes da delegacia de polícia. Eu só sossegava quando via o farol apontando de volta.” 
Depois, quando montaram um conjunto musical na cidade, o convidaram a participar. “Ele tinha uns 13 anos. Um grupo de senhores, liderados pelo maestro espanhol com quem ele tomava aulas de música, veio à minha casa pedir para que o deixasse tocar com eles. Tanto insistiram, que fui obrigada a deixar” – diz entre gargalhadas. “Tudo o que aconteceu em sua vida foi um processo contínuo, sem pular etapas.” E o dom? “Ah, a pessoa nasce com isso.”