Para economista, ‘mercado’ quer definir política do próximo governo

Professor da Universidade de Brasília entende que é preciso rever autonomia na prática do Banco Central e criar participação da sociedade na definição da política econômica

Autonomia na prática do Banco Central precisa ser rediscutida, diz analista (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

São Paulo – Para Evilásio Salvador, economista e professor da Universidade de Brasília (UnB), a defesa da necessidade de ajuste fiscal no Brasil é uma tentativa de definir os rumos da política econômica do próximo governo. A agenda de corte de gastos públicos coincide com a defendida por economistas-chefe de bancos e instituições financeiras, assim como articulistas de economia de jornais. Na quarta-feira (6), o relatório Perspectiva Econômica Mundial, do Fundo Monetário Internacional (FMI), recomendou que o Brasil e países latino-americanos adotem medidas de ajuste fiscal para conter a valorização das moedas ante o dólar.

A questão é defendida pela candidatura de José Serra (PSDB), candidato oposicionista à Presidência da República, ao criticar o “inchaço” do Estado e a necessidade de “cortes de gordura” na estrutura pública. Falta, porém, convicção ao debate econômico na campanha eleitoral, ainda na visão de Salvador.

Embora raramente ocupem o centro dos debates, taxa de juros, câmbio e superávit primário são exemplos de tópicos que aparecem na discussão, em especial junto aos setores empresariais. Para Salvador, o motivo da discussão colocada neste momento é pautar a política do próximo governo. “Na realidade, o que menos ocorreu nessa eleição foi discussão política, sobretudo política econômica. Houve uma tentativa, desde o início da disputa eleitoral, de não discutir economia. Como se não se pudesse dar opinião sobre esse assunto, como se as regras devessem ficar todas como estão”, lamenta.

Evilásio Salvador acredita que a grande questão é o pagamento elevado de juros, que compromete o orçamento público como um todo – um terço dos recursos disponívels pelo poder público, nos cálculos do analista.

A dívida pública foi um tema recorrente de questionamento à candidata do PT, Dilma Rousseff. A ex-ministra destacou que o principal será fazer uma redução da dívida, hoje em torno de 40% do Produto Interno Bruto (PIB), para 30%. Essa proporção vem sendo reduzida desde 2003, quando estava em 56,6% do PIB, exceção feita ao período de crise (2009).

“Nós não vamos fazer ajuste fiscal coisa nenhuma. Isso existe no regime de caixa, quando o governo precisa fazer caixa”, argumentou. A ideia é de que, como o Brasil não precisa mais pagar ao próprio FMI, é dispensável acumular um grande superávit primário, que é a economia feita por União, estados e municípios para o pagamento de juros da dívida.

A questão, por outro lado, é que os principais credores da dívida pública são bancos ou organizações financeiras internacionais. Como a dívida é corrigida pela taxa de juros definida pelo Banco Central – a Selic –, quanto mais alta essa taxa, maior o lucro dos credores. Ao mesmo tempo, como cresce a dívida, o país se vê forçado a aumentar a economia feita para pagar suas contas, minando as possibilidades de investimentos.

“Cedo ou tarde vamos ter de enfrentar, ou vamos ficar reféns daqueles que vivem de juros, da especulação financeira. Vai chegar em um momento que ou faz isso ou corta de educação e de saúde, algo que a população dificilmente iria aceitar, porque agora conheceu os benefícios dessas políticas públicas”, comemora Salvador.

Adriano Biava, especialista em finanças públicas e professor da Faculdade de Economia e Administração da USP, lembra que, atualmente, a dívida interna é a mais preocupante, respondendo por 94% do total da dívida pública. Trata-se, na visão dele, de um acúmulo provocado por sucessivos governos que não resistiram à atuação do mercado.

“Não tem proporção certa da dívida em relação ao PIB. O problema é o que você faz com os recursos.  O país tem que entender que ao credor interessa ganhar. Mas, ao tomador, interessa saber se está tomando para realizar alguma coisa, e não para ficar prisioneiro dos credores”, explica Biava.

Banco Central

Como a questão dos juros é central na redução da dívida e, por consequência, na possibilidade de o Brasil fazer os investimentos necessários, é o caso de discutir o papel da entidade responsável pela definição da taxa básica, a Selic.

O Banco Central chamou grande atenção ao longo do governo Lula e houve mais de um momento em que ministros reclamaram que o BC não estava em sintonia com a política do mandato. Enquanto alguns setores queriam expandir a aplicação de recursos – com foco na área social –, cada reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) do banco se transformava em um momento de frustração, com a manutenção de uma taxa elevada.

Evilásio Salvador considera que é preciso acabar com o mito criado pelo mercado e alimentado por setores da mídia de que o Banco Central é intocável e, portanto, pode ficar descolado da política econômica governamental. “O BC não pode ficar subordinado ao relatório Focus, que pergunta ao mercado financeiro qual deve ser seu próprio comportamento.”

O professor da UnB avalia que o instrumento necessário é a mudança de rumo do Conselho Monetário Nacional (CMN), atualmente formado pelos ministros da Fazenda e do Planejamento e pelo presidente do Banco Central. O CMN é o órgão que define os pontos fundamentais da política econômica nacional, como a meta de inflação, perseguida pelos diretores do BC.

“O que se assistiu nos últimos anos, com medidas tomadas no governo Fernando Henrique Cardoso, foi a retirada da participação da sociedade no controle da política econômica. Deveria haver representantes dos trabalhadores e das trabalhadoras, de setores produtivos e de outros representantes da sociedade organizada”, avalia.

A justificativa do Banco Central para manter elevada a taxa de juros é a possibilidade de inflação. Este ano, o Copom voltou a fazer elevações na Selic, atualmente em 10,75%. A ata da última reunião, realizada no começo deste mês, indica que o banco tem dúvidas quanto aos riscos inflacionários, preferindo manter uma atitude mais cautelosa.

Biava, da USP, entende que há um caminho a ser percorrido em torno do tema. Em primeiro lugar, definir o valor real da dívida, quem tratará de pagá-la e com quais tributos. Depois disso, seria necessário bloquear a formação de novas dívidas enquanto não fique claro como se vai arcar com este ônus. “Se não tomar nenhuma medida e continuarmos com pessoas que transitam entre o mercado e o BC, só vai sobrar isso de aumentar os juros – o que, a pretexto de conter inflação, serve para remunerar credores”, conclui.