Navegação

Sons de todos os mares navegam e aportam no violão de Fred Martins

Compositor e cantor brasileiro, há 12 anos fora do país, traz na bagagem a mistura que forma o DNA nacional

Alfredo Marques/Divulgação
Alfredo Marques/Divulgação
Gravado em 2019 e lançado agora no Brasil, devido à pandemia, álbum 'Ultramarino' é uma viagem musical de várias origens

São Paulo – Fred Martins, que neste fim de semana embarca de volta a Portugal, onde mora, após dois intensos meses por aqui, passou quatro anos sem vir ao Brasil. Pegou momentos conturbados, tanto na partida como no retorno. Um país convulsionado, a começar de sua terra natal, o Rio de Janeiro – ele nasceu em Niterói. Sua geração, conta, acompanhou o que ele chama de processo de decadência do estado: “O que aconteceu no Brasil acho que foi germinado no Rio”.

Desde Janelas, seu primeiro álbum, de 2001, até Ultramarino, o sétimo, que ele só conseguiu lançar agora devido à pandemia, Fred Martins navega no oceano da música brasileira – Bossa Nova, principalmente –, mas aportando em diversas terras sonoras. Descobertas feitas em 11 anos morando fora. Ou, nessa viagem, a constatação de que tudo está por aqui mesmo, no DNA brasileiro.

Voz e violão

“Dentro da música, fiquei dando voltas em muitas áreas. Na música que se faz no Brasil, você pode colher aqui e ali. Mas essa coisa de sair não nada planejado”, lembra Fred, que viajou em 2010 para uma festival na Galícia – ou Galiza. E lá ficou desde então, primeiro na Espanha e depois em Portugal. O que chamou o artista inevitavelmente para a música foi a combinação de voz e violão, personificada, entre outros, por João Gilberto. E a essa altura Fred lembra de Eu vim da Bahia (“Mas um dia eu volto pra lá”).

Fred saiu do Brasil há 12 anos, quando completava 40. Já naquele momento, cultivava uma sensação pessimista sobre o que aconteceria no Rio e no país dali a alguns anos. “Milicianismo, esse culto da violência como único caminho. Com instituições envolvidas, um experimento, uma forma de ser, que foi se espalhando pelo Brasil, essa naturalização da violência.” Ou a diferença de tratamento do Estado quando se trata de gente pobre, que se traduz em ações violentas, cotidianamente, na comunidades. “Um Rio que foi se perdendo”, lamenta. Para completar, setores religiosos que adotaram posições fundamentalistas. “Esses caras ajudaram a botar esses bandidos no poder. Eu saí muito por isso também.”

Samba e choro

Mas é também dali, do morro e das comunidades, da cultura negra, matriz da música brasileira, que foi formando suas linguagens. E dessa base bossa-novista, mas com qualquer gênero, brasileiro ou não, Fred moldou suas composições. Não gosta tanto dos primeiros álbuns, “mais voltado para certa onda pop”. Queria gravar samba, mas foi aconselhado a mudar de praia, por ser branco. “O mundo do samba e do choro sempre me impressionou muito.” Agora, por sinal, ele prepara um disco em parceria com o percussionista carioca Marcos Suzano, uma pendência forçada pela pandemia e retomada agora. Um disco de sambas, principalmente. Oito das 15 faixas, além de uma marcha-rancho e um congo. “Um disco muito carioca”, define Fred, que terminará as gravações em Lisboa.

Fred Martins: bossa, samba, choro e todos os ritmos do mundo no Brasil
(Foto: reprodução Facebook)

Em Ultramarino, o samba está presente com A filha da porta-bandeira, dele e e de Alexandre Lemos. É deles também a canção Novamente, de 1998, famosa na voz de Ney Matogrosso. O disco tem ainda a pungente Poema Velho (Fred e Manoel Gomes) e a leve Colibri (com Marcelo Diniz, seu parceiro mais constante), composta justamente para exaltar um Brasil mais alegre. O que ele conheceu, talvez.

Régua e compasso

Produzido pelo premiado Hector Castillo, Ultramarino tem repertório rítmico variado, uma viagem musical, como o nome sugere. Sons de vários locais, mas essencialmente brasileiro. Que expõe a própria busca de Fred por sons que, de alguma maneira, já estavam dentro dele. “A gente tem uma escola de canção de muito alto nível. Eu já estava livre para minha casa musical aflorar. Minha régua e meu compasso.” Ele dá um exemplo ocorrido logo que deixou o Brasil, ao ouvir um grupo de palestinos tocando na Espanha. “De repente, aquela batida me lembrava música nordestina. Quando saí (do país), fui reconhecendo essas culturas que temos aqui. O nosso ouvido tem o gene dessas culturas. Acho que naturalmente isso foi ficando mais nítido. A nossa base é misturada.”

Quem quer mergulhar no universo sonoro de Fred Martins pode embarcar, por exemplo, em Noite de São João, do CD Para além do muro do meu quintal, um verso de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa. Ou Depressa a vida passa, inspirada parceria com Marcelo Diniz, gravada inclusive pelo amigo Renato Braz. Também é da dupla a faixa Flores, que Zélia Duncan registrou em 2001. Herdeiro de uma escola de canção popular, Fred juntou tudo na bagagem e foi navegar. Sem sair daqui. Mas qualquer dia ele volta pra cá.

(Ouça entrevista de Fred Martins para o programa Colibri na Quarentena, em 2020.)