Código indecente

‘Pintou um clima’ é discurso presente em casos de abusos, diz especialista

Expressão usada por Bolsonaro ante meninas de 14 anos, “pintou um clima”, tem conotação de discurso de “autorização” ou “permissão simbólica”

Alan Santos / PR / Reprodução
Alan Santos / PR / Reprodução
Bolsonaro nega que tenha usado o termo "pintar um clima" em um contexto sexual; mas fala é comum entre abusadores

São Paulo – Ao narrar um encontro que teve com crianças e adolescentes venezuelanas, o presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) afirmou que “pintou um clima” entre ele e meninas de 14, 15 anos. No entanto, para a psicóloga e psicanalista Natália Rodrigues, o termo, nesse caso, tem uma conotação muito grave, porque pode ser visto como “um discurso de autorização”. “É como se ele desse uma permissão simbólica para que homens praticassem abusos com adolescentes”, disse à colunista do portal UOL Nina Lemos.

Bolsonaro, porém, negou ter usado o termo “pintado um clima” em um contexto sexual ou de paquera. Segundo ele e sua mulher Michele, a expressão é usada constantemente, de maneira corriqueira. No entanto, levantamento do jornal O Estado de S. Paulo em base de dados com transcrições de 128 lives realizadas pelo presidente entre 2019 e 2022 não encontrou o termo nenhuma vez.

Há três anos, Natália trabalha em um posto do SUS na região de Belo Horizonte, atendendo principalmente mulheres da periferia, em situação de vulnerabilidade. “Todos os dias no SUS eu atendo meninas e mulheres com traumas e sofrimentos psíquicos graves porque ‘pintou um clima’ na cabeça de um velho quando elas eram crianças.”

Ela relatou que praticamente todas as mulheres que vivem casos muito sérios, como tentativa de suicídio e automutilação, contam histórias de abuso e pedofilia. “Esses são crimes que fazem parte do histórico dessas mulheres e que podem causar distúrbios graves, que podem literalmente colocar em risco a vida dessas mulheres.”

Fala é comum em casos de pedofilia

Embora a pedofilia faça vítimas em todas as classes sociais, Natália observa que a situação é mais grave entre mulheres pobres e negras. “São mulheres colocadas em situação de risco, que vão, por exemplo, trabalhar em casa de família com 8, 9 anos. Algumas mulheres que atendo já são mais velhas, têm seus 50, 60 anos, mas nunca se curaram desses traumas”, afirmou.

Segundo ela, que é especialista em casos sérios relativos a saúde mental, inclusive de mulheres vítimas de abuso, “os autores muitas vezes são aqueles homens que você nunca imaginaria que fariam uma coisa assim, um idoso boa-praça, como um avô, um tio, um empregador ou pastor”, disse à colunista.

E mulheres em situação de vulnerabilidade (como as refugiadas venezuelanas citadas por Bolsonaro) são superexpostas a violências. E também são tratadas como adultas desde crianças. “Os relatos que ouvimos dessas meninas são de extrema violência. É como se houvesse um abuso institucionalizado contra elas.” Natália, assim como muitas outras mulheres, disse ter passado o fim de semana enojada depois de ouvir o relato do presidente.