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Entre as peras de padre Júlio e os programas de Graziano, o Brasil terá de acabar com a fome novamente

Desafios aumentaram – são 65 milhões em insegurança alimentar. Mas é possível resolver, afirmam o religioso, o agrônomo e autores de livro lançado ontem

Reprodução/Facebook
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A Fazenda Coringa, no interior do Ceará: área degradada tornou-se exemplo de produção de alimentos agroecológicos

São Paulo – Trinta anos após o Ação da Cidadania e 20 depois do Fome Zero, o Brasil enfrentará novamente o desafio de acabar com a insegurança alimentar a partir de soluções não só viáveis, como sustentáveis. Algumas foram expostas ontem (8) à noite, no lançamento de um livro de duas capas (editora Discurso Direto), que apresenta o problema nas suas formas mais dolorosas e mostra projetos que deram certo. Para discutir – o livro e o país – dois personagens que vivem o problema cotidianamente, cada qual com sua vivência: o padre Júlio Lancellotti e o agrônomo e ex-ministro José Graziano.

“Este foi um projeto coletivo para falar da maior das violências”, diz Simone de Camargo, autora do livro, ao lado do jornalista Camilo Vannuchi. “Mas também para apresentar uma solução viável através da agroecologia, da agricultura familiar, da agrofloresta”, completa. Assim, de um lado da leitura está a Fome, e do outro A Terra é plena. Textos que se complementam ao mostrar que o problema existe, mas as soluções dependem das escolhas humanas – sociais, econômicas, políticas.

Muitos projetos

Se há cada vez mais pessoas com fome nas ruas, há também um amplo e diversificado conjunto de iniciativas que apontam caminhos. Como a Fazenda Coringa, em Trairi (CE), que passou de área degradada a um exitosa experiência de produção de alimentos agroecológicos, com mais de 20 variedades de verduras, frutas e legumes. Projeto ao qual Simone e outros se dedicam há anos.

O Fome Zero, implementado no início o governo Lula, em 2003, foi justamente a soma de projetos bem-sucedidos pelo país, lembra Graziano, que concebeu o programa como ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome. “Foi juntar experiências que estavam dando certo. Juntamos, acrescentamos um salário mínimo valorizado – que para mim é o grande motor – e a merenda escolar”, resume o também ex-diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO).

Mapa da Fome

“Dá para fazer de novo agora? Dá. Está mais difícil agora? Está.” Graziano lembra que o primeiro Mapa da Fome, feito em 1946 por Josué de Castro, apontava em vermelho faixas da Amazônia e do Nordeste. “Hoje, o relatório da FAO mostra o Brasil vermelho inteiro. A fome se espraiou por todos os cantos.” Ele aproveita para esclarecer que o número de 33 milhões, sempre citado, não é o mais correto para quantificar as pessoas que passam fome no país. Esses são os que não comem nada. Mas há 65 milhões de brasileiros que atravessam o dia sem pelo menos uma as três refeições básicas. Na outra ponta, o problema cada vez maior da obesidade.

Mais que a inflação, Graziano também cita a baixa renda da população. “Somos um país que paga salários miseráveis. Essa é a nossa fome.” E enfatiza a importância dos municípios no combate à fome. E do Estado. Assim como a saúde ganhou o SUS como referência universal, o combate à fome precisa de um farol. “Já demos um primeiro passo no dia 30 de outubro.”

Privação da condição humana

Padre Júlio lembra de quando o ainda presidente da República disse que não via ninguém com fome no país. “Eu simplesmente respondi: eu vejo todo dia. A fome se manifesta no olhar, na lágrima, no susto, na raiva, na revolta, na dor.” Ele conta da avidez das pessoas quando recebem um pão, feito diariamente na Casa da Oração. “Parece que vão comer a mão junto.”

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Ontem, a equipe do religioso levou peras. Distribuíram 500. Um garoto, James, de seus 7 anos, ficou curioso. “Ele olhou e não sabia o que era”, conta o padre. “Imagine um menino que vive numa cidade como a nossa nunca ter visto uma pera. É a privação completa da condição humana.”

É preciso superar o individualismo, a indiferença, “esse sistema neoliberal que mata a África de fome e não se importa com a subnutrição”. Padre Júlio pede aos presentes na Livraria Megafauna, instalada no Edifício Copan, centro de São Paulo: “Não sejam indiferentes. É próprio do cristianismo, da vertente cristã, o partilhar. Comer é conviver. Partilhar é conviver”. E lembra, ao final, que a fome será tema da próxima Campanha da Fraternidade.


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