Retrocesso amazônico

No apagar das luzes, governo Bolsonaro muda direção do Museu Paraense Emílio Goeldi

Há cerca de dois meses, MCTI assegurou que não nomearia novo diretor, e sinalizou que deixaria a tarefa para um futuro ministro

Divulgação
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O Brasil é, definitivamente, um país de contrastes e disparidades da dimensão de seu território. Em um único dia testemunhamos, por um lado, o retorno magistral do Brasil ao campo diplomático internacional com pauta de retorno e valorização da preservação ambiental e da ciência produzida na Amazônia enquanto, por outro, assistimos a uma tentativa espúria de captura da mais antiga e uma das mais importantes unidades produtoras de ciência e conhecimento sobre a Amazônia; O Museu Goeldi.

O 16 de novembro de 2022 foi marcado por um pronunciamento histórico do presidente eleito Lula, na COP27, evento em que participou como convidado do presidente do Egito e do Consórcio de Governadores da Amazônia. Lula coloca o Brasil de volta no protagonismo das discussões mundiais sobre mudanças climáticas e proteção ao meio-ambiente, onde a Amazônia tem papel central.

No mesmo dia, o vice-presidente e coordenador da equipe de transição de governo, Geraldo Alckmin, anunciou os nomes dos membros do Grupo Técnico que farão parte da equipe de transição de governo, incluindo a área de Ciência e Tecnologia, importantíssima para o desenvolvimento sustentável do Brasil, sobretudo da Amazônia.

No entanto, no alvorecer desse dia, o atual ministro de Ciência e Tecnologia, Paulo César Rezende de Carvalho Alvim, após um processo acelerado, publicou no Diário Oficial da União, a nomeação do novo diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi, localizado em Belém. Trata-se do segundo maior museu de história natural do Brasil (o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, o primeiro).

O diretor nomeado é nada menos que um ferrenho seguidor de Bolsonaro, sem formação acadêmica nas áreas de atuação do museu e com pouquíssima experiência em gestão de alto nível em instituições de pesquisa.

Ciência de alta qualidade

Há cerca de dois meses, o ministro Alvim, ao participar, no próprio Museu Goeldi, da inauguração de um Centro de Exposições, assegurou aos servidores da casa que não faria a nomeação do novo diretor. Pois aguardaria a eventual definição do próximo ministro, já que estavam ocorrendo eleições para presidente do Brasil.

Paulo Alvim parece ter sucumbido à pressão bolsonarista. Provavelmente vinda dos deputados federais Joaquim Passarinho (PL-PA) e do Delegado Éder Mauro (PSD-PA). Este último um dos maiores apoiadores e defensores de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados e padrinho do diretor nomeado.

O MCTI, desse modo, quebrou o protocolo, e exonerou sem aviso prévio a atual diretora e nomeou o arquiteto Antônio Carlos Lobo Soares, antes de qualquer discussão prévia com a equipe de transição.

O Museu Goeldi, em seus 156 anos de existência na Amazônia, é uma instituição que sistematicamente produz ciência de alta qualidade, forma recursos humanos, mantém inúmeras coleções científicas nas áreas da sócio e da biodiversidade, e recentemente está engajado no processo de produção de inovação tecnológica, com registro de patentes de produtos e serviços, contribuindo assim, significativamente para a melhoria de vida da população da Amazônia, especialmente do estado do Pará.

Não apenas a ciência está intrinsecamente ligada ao Museu Goeldi, mas a própria história do Brasil. Foi Emílio Goeldi, o pesquisador suíço que dá nome ao museu, que contribuiu, de forma determinante, no final do século XIX, para a decisão da comissão de arbitragem suíça de atribuir resultado favorável ao Brasil na questão do Contestado do Amapá. Se hoje o Amapá pertence ao Brasil, devemos muito à intervenção de Emílio Goeldi, que foi, inclusive, o primeiro diretor do então chamado Museu Paraense.

Caminho de reconstrução

Desde então, os trabalhos realizados por pesquisadores do Museu Goeldi contribuíram e contribuem para o conhecimento científico e para a elaboração de políticas públicas voltadas para a Amazônia.

O museu foi responsável pelo reconhecimento e delimitação territorial da demarcação de diversas Terras Indígenas; pela coordenação de grupo de trabalho para a elaboração do Zoneamento Ecológico-Econômico do Pará e pelo Zoneamento Ecológico-Econômico da BR-163; a elaboração de leis estaduais, entre elas a que estabelece a lista de espécies ameaçadas do estado do Pará e a que identifica e define os processos sucessórios de vegetação secundária para fins de gestão ambiental; pelo gerenciamento costeiro do estado do Pará (em conjunto com a Universidade Federal do Pará); o estudo e reconhecimento, pelo IPHAN, de todas as línguas indígenas brasileiras; pelo descobrimento, por pesquisadores do Museu, de 587 espécies novas da biodiversidade amazônica (fauna e flora), somente nos 10 primeiros anos do século 21, entre tantas outras ações.

A despeito dos grandes avanços, ainda há muito conhecimento a ser produzido e aproveitado na forma de inovação tecnológica, em um contexto em que o país deverá retornar à normalidade, a Amazônia valorizada, conservada e seus povos respeitados. O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva tem sinalizado fortemente que a Amazônia terá o protagonismo devido em seu governo, e isso é reconfortante.

Quem estiver, portanto, à frente do desafio de administrar uma instituição sesquicentenária como o Museu Goeldi, com um número absurdamente reduzido de pessoal e de recursos orçamentários, terá um trabalho hercúleo a empreender e um longo caminho de reconstrução a percorrer.

Parque Zoobotânico

museu goeldi
Parque Zoobotânico do Museu Goeldi (Divulgação)

Um gestor bolsonarista tende a seguir fora dos parâmetros de uma administração transparente e em linha oposta às tradições institucionais. Pelos corredores da instituição já se ouve, por exemplo, que uma das prioridades do diretor recém-nomeado será privatizar o Parque Zoobotânico, um espaço central da cidade de Belém, onde famílias vão aos fins de semana e feriados para ter contato com exemplares da biodiversidade amazônica (fauna e flora), visitar o aquário mais antigo do Brasil ou adquirir conhecimento no recém inaugurado Centro de Exposições, onde uma exposição sobre as transformações da Amazônia tem feito grande sucesso.

Privatizar o Parque Zoobotânico representará o maior retrocesso no estabelecimento e na condução de uma política efetiva de comunicação em ciências, pois é justamente no espaço físico do Museu em que os resultados das pesquisas científicas se transformam em informação de qualidade ao público de cerca de 300 mil visitantes/ano.

É imperativo, nesse contexto, que a atual equipe de transição, juntamente com o meio político representativo dos interesses da divulgação e do conhecimento científicos, da preservação ambiental e do apoio ao desenvolvimento sustentável da Amazônia, façam uma forte ingerência junto ao ministro de Ciência, Tecnologia e Inovações para que ele revogue a portaria de nomeação do diretor, ou que o novo ministro de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovações, a tomar posse em janeiro de 2023, assim o faça.

Sem isso, não será possível ao Museu Goeldi implementar sua missão institucional, de tanta relevância histórica à Amazônia, ao Brasil e ao mundo. A manter-se o atual diretor, a instituição estará fadada ao ostracismo e ao esquecimento, o que, para um museu de história natural, equivale ao seu fim.


Rogério Augusto Borba é pós-graduado em Administração Pública da Universidade Heriot-Wat, Campus de Edinburgo, Escócia

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