Um longo caminho

Igualdade de gênero no Brasil. Um direito possível?

Se mantido o ritmo atual das políticas públicas, somente daqui a 300 anos as mulheres serão tratadas como iguais, segundo Relatório das Nações Unidas

StockSnap / Pixabay
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O Brasil enfrenta desafios no que diz respeito ao casamento infantil, ao trabalho doméstico não remunerado e à participação política das mulheres

*Por Alessandra Nilo

Somente daqui a três séculos iremos comemorar a efetivação da igualdade de gênero no mundo. Isso mesmo: se mantido o ritmo atual das políticas públicas, somente daqui a 300 anos as mulheres serão tratadas como iguais, segundo o Relatório das Nações Unidas The Gender Snapshot 2022 — SDG Indicators (un.org). Ou seja, caminhamos em passos mais que lentos para alcançar o 5º Objetivo do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 (ODS 5): Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas | GT Agenda 2030.

E se o contexto global não está para facilitar a vida das mulheres, no Brasil a situação exige ainda mais atenção. Além de sermos o 92° entre 153 países no ranking de garantia de equidade para mulheres, em 2022 retrocedemos ainda mais devido aos efeitos da pandemia da Covid-19 e ao aprofundamento das históricas e múltiplas violências de gênero, num contexto de menor investimento e da erosão de políticas públicas no setor, algo que observamos nos últimos anos, através dos dados sistematizados pelo Relatório Luz da Sociedade Civil para a Agenda 2030 no Brasil (https://gtagenda2030.org.br/relatorio-luz/relatorio-luz-do-desenvolvimento-sustentavel-no-brasil-2023/)  o único documento no país que avalia o grau de implementação das 169 metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável a partir de dados oficiais do Governo Federal.

São muitos os desafios para o alcance do ODS 5. Um deles, como dito, é a crescente violência de gênero que, apesar de ser uma das metas (5.1- acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas) da Agenda 2030, ainda segue carente de indicadores. Precisamos urgente atenção governamental sobre esta área.

Outro desafio crucial é a persistência de desigualdades étnico-raciais e econômicas, que marcam as desigualdades de gênero:  as mulheres negras são as mais afetadas e sofrem agressões verbais e físicas com maior frequência. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram quase 51 mil casos de violência física, psicológica e/ou sexual contra mulheres por dia, dos quais 65,6% foram direcionados a mulheres negras. Além disso, o Brasil enfrenta desafios no que diz respeito ao casamento infantil, ao trabalho doméstico não remunerado e à participação política das mulheres. Os retrocessos em metas como as 5.3, 5.4 e 5.5 (que versam sobre práticas nocivas, como o casamento infantil; valorização do trabalho doméstico e/ou de assistência não remunerado realizado por meninas e mulheres; e plena participação política e igualdade de oportunidades de liderança para meninas e mulheres) demonstram que a igualdade de gênero é uma batalha constante e que políticas públicas direcionadas são essenciais para a sua promoção.

O cenário sobre casamentos prematuros, por exemplo, é alarmante. Os últimos dados disponíveis do IBGE mostram que passaram de 751.179 em 2020 para 932.502 em 2021, mas há uma subnotificação histórica dessas uniões, em função da informalidade e estima-se que sejam pelo menos 12 milhões por ano. No que diz respeito ao trabalho doméstico não remunerado, as brasileiras dedicam a ele, em média, 22,1 horas semanais, enquanto os brasileiros dispõem de 11,1 horas semanais a tarefas de cuidados e trabalhos domésticos não remunerados. No caso da participação política, por exemplo, houve certo avanço, apesar de insuficiente: as deputadas federais eleitas passaram de 77 para 91 em 2022, o que representa apenas 17,7% dos assentos da Câmara dos Deputados, enquanto a média global é de 26,6% e a sul americana, de 31%.

Mas vale reforçar que há soluções, caso o Estado se comprometa a mudar esse rumo. Para lançar uma luz sobre os caminhos possíveis para uma mudança de cenário, o relatório do GT Agenda 2030 traz recomendações da sociedade civil organizada. Entre elas, destacam-se o aumento do orçamento para políticas públicas de combate à violência contra as mulheres; a garantia da aplicação da Lei Maria da Penha em todos os casos de violência doméstica; o avanço de propostas legislativas para promover a igualdade de gênero; a inclusão da educação sexual e de gênero na grade curricular escolar; o fomento à participação política de meninas e mulheres; além do monitoramento rigoroso de indicadores relacionados ao tema.

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O cumprimento do ODS 5 no Brasil é um desafio complexo e uma dívida histórica, mas é uma necessidade estruturante: sem equidade de gênero, jamais alcançaremos um futuro mais equitativo e sustentável. O Relatório Luz nos alerta para a necessidade de ação imediata e determinada por parte do Estado brasileiro e da sociedade como um todo. A igualdade de gênero não é apenas um objetivo da Agenda 2030, mas um princípio fundamental de justiça e equidade que deve ser perseguido incansavelmente. Para alcançá-lo, no entanto, o Brasil precisa romper com vários dos paradigmas políticos basilares do Estado, entre eles, influências religiosas fundamentalistas, baseadas numa cultura patriarcal e de natureza escravocrata que sustentam um sistema de exploração dos corpos e do valor do trabalho realizado por meninas e mulheres (em toda a sua diversidade). Temos a chance de encerrar o ciclo de retrocessos que têm nos acompanhado até aqui, desde que o Estado brasileiro mantenha o compromisso político de investir em políticas públicas que diminuam as desigualdades e que garantam equidade para todas as meninas e mulheres brasileiras.


*Alessandra Nilo é coordenadora-geral da Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero e co-facilitadora do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 (GT Agenda 2030)

(Foto: Nilton Pereira/Divulgação)