Crises da meia-idade

Após boom, protestos passam por ‘crise de identidade’: qual é a reivindicação?

Atos começaram se opondo ao aumento da tarifa do transporte, mas o crescimento e a difusão por mais cidades do país levam à expressão de queixas aparentemente impossíveis de conciliar

Danilo Ramos. RBA

A marcha de segunda em São Paulo mostrou uma gama de pautas que não estavam em jogo antes

Dezenas de milhares de pessoas foram às ruas de São Paulo – certamente, mais de 100 mil. Esta talvez seja uma das duas afirmações concretas e irrefutáveis que por enquanto se pode fazer, sem medo de errar, sobre as marchas multitudinárias que se espalharam ontem (17) pelas zonas sul e oeste da cidade. A outra é que a Polícia Militar é a origem de toda violência nas passeatas. Sua reduzidíssima presença na segunda-feira permitiu que os cidadãos se manifestassem pacificamente, como sempre quiseram fazer.

Todo o resto ainda é nebuloso. Restam poucas dúvidas de que a massa está coesa contra o aumento da tarifa de ônibus, trem e metrô – motivo pelo qual uma série de manifestações vem sendo convocada desde o último dia 6. Mas os consensos práticos parecem chegar até aqui, porque a redução do preço da passagem é a única pauta da mobilização que pode ser vista a olho nu por qualquer cidadão de qualquer idade, posição política ou classe social.

O elevado custo do transporte público em São Paulo, um dos maiores do mundo, finalmente, depois de anos, conseguiu revoltar os paulistanos – ainda mais porque a qualidade do serviço deixa muito a desejar. É verdade que ninguém quer pagar R$ 3,20 em vez de R$ 3 para se deslocar pela cidade, mas também é verdade que ninguém está tomando as ruas apenas para barrar o reajuste de 20 centavos. Os vinténs parecem muito mais um estopim.

Ontem à noite, ao ver 11 capitais do país fervilhando em manifestações, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, disse que os protestos tentavam transmitir uma espécie de “angústia” da juventude brasileira. Carvalho é uma das poucas autoridades que, ao se pronunciar, mostrou alguma sensibilidade para o recado que emana das ruas. Existe sem dúvida uma insatisfação. Mas com quê? Com tudo, defendem alguns. Não é bem assim.

A mobilização contra o aumento da tarifa dos transportes em São Paulo tem sido tradicionalmente convocada por forças políticas nitidamente de esquerda. O Movimento Passe Livre, que encabeça os protestos, é uma organização apartidária e horizontal de esquerda. Engrossam as marchas siglas como o Psol e PSTU, partidos de esquerda, além de organizações políticas universitárias e estudantis, todas identificadas com o ideário socialista.

Também sempre existiram grupos minoritários de corte anarquista, punks, skinheads e demais grupos antifascistas. Mais recentemente, outras entidades se uniram às reivindicações, como o Sindicato dos Metroviários de São Paulo e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Foram eles que mantiveram acesa a revolta contra o aumento da passagem nos últimos anos.

De lá para cá, cada reajuste foi acompanhado de protestos, quase sempre pequenos. Muita gente que marchou pelas ruas da cidade ontem já amaldiçoou pelo menos uma vez na vida estas pequenas aglomerações populares, já as criticaram por atrapalharem o trânsito, já aprovaram a ação repressiva da polícia contra elas e já as depreciaram como “turba de comunistas anacrônicos” – como fez há alguns dias o comentarista da Globo Arnaldo Jabor.

Porém, como Jabor, parecem ter mudado de opinião. E, como Jabor, estão tentando direcionar o movimento para contemplar seus próprios interesses, querendo surfar numa construção política da qual não participaram – e que certamente não se relaciona com suas visões de mundo.

Ontem, entrevistando diversas pessoas sobre os motivos que as levaram ao Largo da Batata, colhi o seguinte depoimento: “As pessoas estão completamente erradas, pensando que tudo isso é só por 20 centavos. Essa foi apenas a faísca da explosão inteira. A gente quer baixa inflação, chega de imposto, chega de corrupção, chega de bolsa-miséria – porque Bolsa-Família é o caramba! A gente quer dignidade, honestidade e o direito que a gente tem”.

As razões que levaram para a rua essa jovem de 26 anos refletem quase à perfeição a pauta dos partidos de direita e dos meios de comunicação tradicionais – que também modularam seus discursos em relação aos protestos. Até sexta-feira (14), Veja, Folha, Estadão e O Globo pediam descaradamente mais repressão policial contra os baderneiros que estavam atrapalhando o trânsito. Agora claramente querem capturar a insatisfação popular para seus próprios objetivos.

Começaram a veicular a ideia de que a juventude está insatisfeita com o governo do PT, e a alternativa – eles não escondem – seria o PSDB. Não é à toa que o pré-candidato tucano à Presidência da República, Aécio Neves, se apressou a parabenizar os protestos. Está se montando um circo político e midiático hipócrita em torno de uma manifestação que, em suas origens, é profundamente progressista e ancorada em valores políticos – não partidários.

Por isso, em São Paulo, grita-se igualmente contra o prefeito Fernando Haddad e o governador Geraldo Alckmin. O petista e o tucano se aproximam um do outro como governantes que não veem problemas em sangrar o bolso e a paciência do povo com tarifas pesadas e serviços péssimos, sempre em benefício das empresas. Mas não podem ser confundidos como farinha do mesmo saco. Não são. Existe uma diferença política entre ambos, que é grande em alguns pontos, como diálogo e participação social; e menor em outros.

Essa distinção também ocorre entre os manifestantes: estão todos cansados das “coisas como são” no Brasil, mas expressam esse cansaço (ou esboçam soluções) de maneira às vezes radicalmente diferentes. Nesse bolo existe gente que acredita ser uma boa solução para a causa indígena no Mato Grosso do Sul, por exemplo, colocar todos os guarani-kayowá num ônibus para a Amazônia; e gente que gostaria de ver os fazendeiros expulsos das terras que sempre pertenceram às tribos.

Há pessoas favoráveis ao passe livre, ao transporte público gratuito como direito inalienável do cidadão, e outras que consideram isso um delírio juvenil. Gente que acredita na ideia do “Brasil-potência” e gente que enxerga os efeitos colaterais que esse tão propalado desenvolvimento está causando nas populações mais excluídas.

É possível conciliá-los para além da redução da tarifa, para além dos 20 centavos? Talvez também estejam juntos em manifestações contrárias à vultosa destinação de recursos públicos para a orgia comercial que se transformou a Copa do Mundo. Mas dificilmente se uniriam num protesto contundente para barrar a realização do megaevento da Fifa.

Em alguns momentos, ontem, em São Paulo, alguns manifestantes puxaram o Hino Nacional. Alguns, porque nem todos sentiram vontade de entoá-lo. Talvez essa recusa (ou esse ufanismo) seja sintoma de que – quando a tarifa abaixar, se abaixar – a mobilização que está ganhando a cidade e o Brasil pode caminhar para qualquer lado, do mais progressista ao mais conservador.