Bem comum, esfera pública e ética: o sentido da universalidade nos serviços
Modelo de mercantilização se apoia sobre uma base extremamente frágil, centrada na desvalorização do trabalho e no aumento constante no consumo. Não é apenas instável: é insustentável
Publicado 04/02/2014 - 08h52
A oportunidade dessa reflexão, propiciada pelo nosso 2º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão em Saúde, ocorre num momento histórico importante, em que se evidenciam, mais uma vez, limites estruturais significativos do desenvolvimento capitalista: seu caráter despótico, centralizador e coletivista. Um momento que nos impõe resgatar, com Marx, a ideia de que somente uma práxis coletiva, voltada para construção de uma subjetividade livre e criativa que coloque o homem no centro da história conseguirá cumprir com os anseios libertários reiteradamente prometidos desde o inicio da ascensão da burguesia.
As promessas de autodeterminação do indivíduo, que acompanharam a ascensão da burguesia, esbarram, sempre, no caráter despótico do capitalismo, das leis férreas do capital voltadas a submergir os homens e a política em transações mercantis e financeiras. De um lado os perdedores, porque dependentes da obsessão consumista e do endividamento, permanentemente ameaçados pelo desemprego; de outro, os ganhadores que, ao acumular capital financeiro, gozam do tempo livre e do consumo de luxo e emergem como prova da soberania do indivíduo-consumidor.
O Estado, no capitalismo, é companheiro inseparável da mercantilização geral, pois o sistema jurídico liberal (não confundir com o Estado democrático de direito), ele foi construído para permitir a fluidez da circulação da mercadoria e do dinheiro. Liberalismo e mercado atuam sempre no sentido da desregulamentação, da mercantilização / mercadorização; e também da financeirização, como etapa abstrata e concreta do desenvolvimento do capital.
Os últimos 30 anos foram palco desses três processos nos quais o neoliberalismo se assentou: a financeirização, a mercadorização e a desnormatização / desregulamentação.
Vejamos, primeiro, o processo de financeirização. As assimetrias entre o PIB mundial e o capital financeiro se acentuaram sobremaneira até a crise de 2008; tendo este último atingido um valor de 14 vezes o PIB mundial. Isto é o que se negocia dentro e fora das bolsas de valores! É o que dá a base para que a política econômica se transforme em política monetária; para que toda riqueza, toda a economia, se apoie na autonomia do gasto. Gasto que foi, é e será garantido pelo sistema de crédito (temos aí a bancarização da sociedade).
Trata-se de um modelo de base extremamente frágil, centrado na desvalorização do trabalho e no aumento constante no consumo. E, ainda mais: voltado para o consumo supérfluo. Um modelo destinado a criar bolhas sobre bolhas. Um modelo não somente instável, mas, sobretudo, insustentável.
Como alertam muitos, a crise capitalista não é mais episódica, mas intrínseca e estrutural; com a supremacia das finanças e sua face de especulação, contra a qual não cabe uma crítica apenas moralista, pois ela é um traço constitutivo do capitalismo desse século – junto com seus pares, como a desregulamentação, inovação financeira e o endividamento.
O segundo elemento é a mercadorização. Aqui temos a generalização da ética da troca. A mercantilização invade todas as esferas da vida humana, os espaços do bem comum. Tudo aquilo que é necessário para reprodução humana (o ar, a água, a órbita celeste, as instituições, a cultura etc.) tornasse mercadoria e mercantilizável; inclusive o que, antes, era impensável e inaceitável se tratar mediante cálculos de lucro.
Essa mercantilização invade instituições, que estiveram resguardadas dos instrumentos de mercado, como as instituições voltadas para geração do conhecimento e pesquisa, os serviços de utilidade pública, o domínio cultural em que repousa nosso patrimônio histórico e a criatividade intelectual. E, mais importante, esse não é um processo marginal, volta-se a mercantilizar, inclusive, o que já havia sido, em algum momento histórico, desmercantilizado.
A justificativa ideológica para esse movimento é a seguinte hipótese: “somente o sistema de preços permite uma eficiente alocação de recursos; pode-se atribuir preço a tudo, e o mercado funcionará como guia ético, uma ética para toda ação humana”.
Claro que esse não é um movimento atípico do capitalismo e no decorrer de sua história. Porém, no momento atual, ele assume uma força persuasiva peculiar. Por quê? Porque esse movimento invade e coloca em risco dois regimes fundamentais, propiciadores da justiça e da igualdade: o regime do trabalho e o da seguridade social.
O trabalho e o direito ao trabalho se desconfiguram pelo incentivo à flexibilização e à precarização das condições e relações de trabalho, desestruturando a sociedade salarial, base do direito ao trabalho, corolário do direito à vida; algo superior, inclusive, ao próprio direito de propriedade!
Esse processo também desconfigura a previdência e a seguridade social (garantidora de pensões, quando do envelhecimento, e auxílio nos movimentos cíclicos de desemprego), ao pretender extrair do próprio salário o conteúdo e a parcela da previdência.
É a previdência que garante aquele trabalho que ascende no ganho da distribuição funcional da renda, ao não permitir que esse ganho se volte para a garantia de uma renda futura, quando da aposentadoria, e/ou muito menos, na forma de fundo que garante renda nos momentos (cíclicos) de declínio da economia.
A seguridade social é colocada em risco pela mercantilização dos serviços públicos essenciais, com a redução dos serviços ofertados diretamente pelo Estado e modificando a forma como esses serviços são ofertados. A privatização, as iniciativas de terceirização e de parcerias público-privado provocam uma inversão da forma como o conceito de serviço público foi concebido, por mais de um século. Ele foi modelado segundo o grande ensinamento de Max Weber, segundo o qual um ethos profundo deve ser intrínseco à burocracia pública de alto nível, onde a relação fornecedor/cliente é algo muito diferente das características que tendem a reger a atuais relações de vendedor/pagadores.
A relação fornecedor/cliente, permeada por um ethos público, é o que permite graus de anonimato e de não diferenciação na provisão dos serviços, características essenciais da universalização. Um servidor público exemplar é o segue normas de não privilégios, de não clientelismo, de não burocratismo também (pois se desenvolveram salvaguardas contra a patologia burocrática), de forma a favorecer os princípios e as práticas da igualdade e do universalismo.
O conceito de cidadão é substituído pelo conceito de contribuinte-usuário-consumidor, e este último passa a ser idolatrado. Idolatrado porque escolhe, é “artífices da eficiência”, rege-se pela lógica e pela ética do mercado, e – segundo a ética mercantilista – é garantia de preços justos e de equilíbrio.
Assim, essa figura de contribuinte-usuário-consumidor ganha evidência e é vista preferível, em contraposição ao cidadão “passivo”, que não faz escolhas, que apenas desfruta de bens coletivos e comuns, que “não exerce escolhas e, portanto, não garante a eficiência”.
Nesse contexto, o Estado, por sua vez, “toma ares de mercador”, passando a ofertar bens e serviços que não passaram ainda pelo crivo da escolha democrática e da eficiência social e política. Pior. Esses serviços passam a ser ofertados e administrados por profissionais que não receberam o carimbo da eficiência em concorrências públicas, em detrimento daqueles que cometeram “o pecado” de serem funcionários de carreira, isto é, o “pecado” de se submeterem ao Estado democrático, e assumirem o compromisso ético de serem servidores públicos.
O setor público passa a ser fatiado em incontáveis serviços, oferecidos a consumidores diversos, na forma de produtos diferenciados em função de diversas expectativas e culturas de consumo, de diversos grupos sociodemográficos, interesses particulares etc.
Segundo Laura Penachi, a mercadorização estimula enormes gastos em consumo, porque ativa o que a autora chama de desertificação antropológica. Isto se dá quando as pessoas deixam de valorizar as relações sociais como forma de reconhecimento e sociabilidade, e se voltam para relações de aparência. É a alimentação consumista do narcisismo, onde crianças viram adultos, e os adultos viram crianças, pois ambos estão em busca de consumo, em competição cega, ávidos por ter, cheios de inveja um do outro e totalmente infantilizados em suas relações.
Por último, o terceiro elemento do atual período neoliberal. A desnormatização/ desregulamentação são estreitamente correlacionadas, pois há uma intolerância para com as regras, muito visível no trinômio neoliberal: menos regras, menos taxas, menos Estado.
A chamada autorregulação do mercado golpeou, inclusive, o senso de valor presente na norma, na lei, que é substituída pelos contratos privados, que mantêm uma forte aliança com o reducionismo econômico. Quando o contrato bilateral passa a ter força social, instauram-se um individualismo e um privatismo endêmico: o mercado passa a ter força de lei em escala planetária; celebram-se as virtudes da livre escolha e do contrato flexível, supostamente igualitário e emancipador.
Aqui se funda o princípio da terceirização, quando o contrato bilateral substitui a ideia de Estado terço – no sentido de contrato social, como concebido pelo pensamento clássico, sendo substituído pelo contratualismo, como ideologia e prática ideológica, sem mais corresponder à ideia de uma relação indivíduo/sociedade/Estado como no contrato social.
Mais uma vez, o que pode anular os efeitos negativos dessa tendência é a construção de mecanismos fortes de sustentação da democracia, dos direitos sociais e econômicos, que têm como pedra angular o Estado Social e sua capacidade de garantir autoproteção social, em lugar de mercados autorregulados; conforme enunciado por Karl Polanyi.
O Estado democrático de direito e a autonomia da política são os dois pilares fortes da relação indivíduo/sociedade/Estado. O Estado de direito se baseia no princípio do terço, como mediador das trocas e das relações indivíduo/sociedade, e das relações bem comum /sociedade, dado que o mercado não deve ser a fonte de geração de regras universais.
A democracia, junto com a noção de esfera pública, como intermediária entre os interesses gerais, públicos e aqueles privados, particulares, atuando a partir de instituições; a noção de bem comum e de bens públicos; e a argumentação racional permite construir vida social, como superação do individualismo negativo, narcisista, consumista e espectador.
A construção do triângulo público-privado-comum (social) necessita mediação institucional, necessita revigorar o que é público, e dar a importância ao estatal.
A necessidade de instituições – que tratam, organizam, fazem mediação, e que não são apenas normas e fins, mas instrumentos e meios, pelos quais as relações sociais são passíveis de negociação e argumentação visando interesses gerais e coletivos, versus demandas corporativas; enfim, tudo aquilo que nos faz distantes do fundamentalismo – pois bem, a necessidade de instituições é o que fundamenta o Estado de direito.
Nesse sentido as instituições são bens públicos e a mediação institucional é uma função central da civilização moderna. As instituições são os filtros civilizatórios que estruturam os dois pilares da modernidade: a autonomia da política e o Estado de direito.
Em efeito, quando se enfatiza o autogoverno e as virtudes da sociedade civil, não devemos esquecer o risco de refeudalização e da perda da noção do que seja a esfera pública e de sua função de mediação institucional. Enfim, do princípio do terço entre indivíduo e sociedade.
A vitalidade da esfera pública e da democracia depende não somente da densidade da capacidade associativa, da organização social, mas também da intermediação institucional e de seu grau de maturidade; em resumo, da construção de um espírito público coletivo.
Pois o risco é a dessocialização do indivíduo e a despolitização da sociedade.
A esfera pública constitui uma variedade de processos institucionais, de discussão, conflitos, de elaboração e de deliberação, de ação sobre os problemas do bem comum, que se expressa em políticas públicas democráticas onde o sujeito-cidadão exprime sua autonomia política, de forma de fazer valer seu pensamento.
O que podemos então definir como público é bem simples. Público, o oposto de privado em todas as suas diversas possibilidades semânticas. Façamos como o fez Ota de Leonardis:
1) Público é o oposto do privado, sinônimo de segredo; o que é público não é segredo, deve ser exposto à visibilidade pública;
2) Público é o oposto do privado, como sinônimo de particular; o que é público é geral, tem validade universal;
3) Público é o oposto do privado, com sentido de exclusivo; público designa o que é comum;
4) Público também é o oposto de privado, com sentido de autorregulado; pois público implica a existência de instituições, em construção de regras e normas.
Por isso a esfera pública, para cumprir sua função de intermediação, como intermediação, demanda a criação de bens públicos, demanda o desenvolvimento do aparato estatal.
A democratização do Estado e sua consolidação em Estado de direito, com a extensão do direito em direito social, operou a transformação da subjetividade jurídica do indivíduo em status coletivo; quando o Estado social expressou a negociação entre sindicatos, grupos profissionais e organizações de interesse para construção de bens públicos, tornou-se possível uma ação pública do Estado, que construiu bens coletivos/sociais e fundamentou-se a natureza pública desses bens.
Por isso o bem comum, tudo aquilo que não pertence a ninguém como o ar, a água, a esfera celeste, a cultura, as instituições, junto com o desenvolvimento da esfera pública e da constituição de um ethos público e coletivo constroem os nexos teóricos e práticos da noção de universalidade.
* Texto adaptado da palestra da professora doutora Ana Luiza Viana, proferida na abertura do segundo Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão em Saúde, realizado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)